Entrevista/ “Ao empreendedor agrícola pede-se uma capacidade de sofrimento suplementar”

“Ao empreendedor agrícola pede-se uma capacidade de sofrimento suplementar, pois além de todas as dificuldades adjacentes ao próprio negócio acresce a incerteza dos fatores climáticos e a perecibilidade dos produtos”. A explicação é de Celso Freitas, fundador da Celgreen, um projeto situado em Águeda, que o consultor e professor universitário abraçou há sete anos.
Com uma carreira profissional centrada essencialmente consultadoria e no ensino universitário, Celso Freitas abraçou com otimismo a sua veia empreendedora e em 2013 criou a Celgreen, um projeto agrícola/frutícola na zona de Águeda. Atualmente, comercializa frutas e hortícolas, mas também outros produtos transformados, sementes e plantas e aposta na digitalização do negócio frutícola em ecommerce.
Em entrevista ao Link to Leaders, o empreendedor explica o seu objetivo de apoiar e promover modos de produção de cultivo sustentáveis e melhores práticas agrícolas, de forma a atingir uma atividade económica, social e ambiental responsável. Ambiciona aumentar a rentabilidade das atividades agrícolas e ajudar a melhorar a vida de agricultores, através da consultoria e da formação.
Como é que surgiu a Celgreen?
A empresa Celgreen foi criada em março de 2013, para complementar o trabalho que já fazia como consultor de empresas agrícolas e de pequenos agricultores desde 2000, mas que estava relegado para segundo plano, pois durante essa altura, a minha principal atividade profissional era a formação e o ensino na área da agricultura e jardinagem.
Nessa época, com uma procura maior pelos serviços de consultoria e acompanhamento técnico, pelo maior volume de projetos de investimento e a necessidade de que os jovens agricultores me transmitiam de apoio especializado, decidi abrir a empresa. Ao mesmo tempo, comecei as primeiras plantações próprias, inicialmente com os pequenos frutos, hortícolas e aromáticas.
Nestes últimos anos, o percurso tem sido ascensional, quer nas áreas de atuação quer na abrangência territorial. Hoje em dia, a empresa atua fundamentalmente em três diferentes áreas de atividade um pouco por todo o país: a consultoria, formação e projetos, dedicando-se inclusivamente à instalação de produções agrícolas e à construção e manutenção de jardins; o comércio de frutos e hortícolas, aromáticas e produtos transformados, com marca própria Quinta da Erva Doce, produzidas em vários espaços de produção, e com entrega de cabazes ao domicílio; e o turismo em espaço rural, atividades de natureza e atividade em espaço pedagógico e de experimentação gastronómica.
Como é que um consultor e professor universitário entra no negócio da produção frutícola?
Fruto de todas essas vivências anteriores… começando exatamente pela formação académica onde me licenciei em Engenharia Agrícola pela UTAD, com especialização em estudos pós-colheita em maçã e pera. E depois, dando formação e fazendo consultoria na área da fruticultura foi crescendo a vontade de fazer produção própria. O investimento na produção própria desde sempre esteve no meu horizonte e a partir do momento em que consegui os terrenos para o fazer, comecei essa aventura.
“O empreendedorismo está-me no sangue. O meu pensamento leva constantemente ao surgimento de novas ideias, de projetos inovadores (…)”.
Ser empreendedor estava nos seus planos?
Desde sempre… O empreendedorismo está-me no sangue. O meu pensamento leva constantemente ao surgimento de novas ideias, de projetos inovadores, na procura constante de negócios e oportunidades, com persistência, determinação e resiliência, com mais ou menos sucesso, com o objetivo de ser um agente de mudança e, obviamente, de ter prosperidade económica.
“(…) para os alavancar [os projetos] mais rapidamente e para o retorno aparecer mais cedo, precisaria de um ou mais investidores… Não iniciei conversas, nem procura de qualquer investidor, mas até ao final do ano conto avançar nesse sentido”.
Tem investidores externos no projeto?
Ainda não. Tudo o que realizei até agora tem sido com dinheiro próprio, e por isso os avanços não são tão rápidos como gostaria… ultimamente foram-me solicitados projetos agroalimentares por parte de uma empresa que me quer como parceiro desses mesmos investimentos, e tenho muitos outros projetos próprios para arrancar… Como já referi, para os alavancar mais rapidamente e para o retorno aparecer mais cedo, precisaria de um ou mais investidores… Não iniciei conversas, nem procura de qualquer investidor, mas até ao final do ano conto avançar nesse sentido.
“Não temos praticamente desperdício, pois aquilo que não se vende em fresco, transformamos ou reutilizamos. Os produtos que vendemos como transformados são processados de forma artesanal com uso de processos físicos de conservação”.
A Celgreen afirma ter como objetivo apoiar, desenvolver e promover modos de produção sustentáveis, por forma a alcançar uma atividade económica, ambiental e socialmente responsável. De que forma?
Isso é ponto assente. O presente e futuro passam mesmo por aí. Acredito na sustentabilidade económica, mas ela não se faz nem pode fazer sem responsabilidade ambiental e social. A linha de ação da Celgreen passa por produzir de forma sustentável, temos produções biológicas e temos outras que embora não sejam certificadas seguem os princípios da agricultura biológica, orgânica, ecológica ou sustentável.
Não temos praticamente desperdício, pois aquilo que não se vende em fresco, transformamos ou reutilizamos. Os produtos que vendemos como transformados são processados de forma artesanal com uso de processos físicos de conservação. Quando compramos para revenda, tentamos valorizar o trabalho do produtor, pagando um preço justo por quem tem o trabalho mais difícil e o maior risco durante mais tempo, e tentamos cingirmo-nos ao mercado local e quanto muito nacional. Estamos a trabalhar mais no sentido de melhorar a embalagem de alguns produtos para diminuir a quantidade de resíduos e naquilo que podemos na reutilização de águas.
Qual o modelo de negócio do seu projeto?
O modelo de negócio começa e acaba no mercado. Temos uma linha orientadora nos nossos processos produtivos e consultivos que tem de ir ao encontro daquilo que o cliente quer, daquilo que procura, dando-lhe soluções responsáveis e criadoras de valor para o seu negócio, no caso dos serviços, ou no caso dos produtos, dando-lhes produtos de qualidade, diferenciados e de sabor autêntico e genuíno, que permitam trazer-lhes boas memórias gustativas ou olfativas.
Temos diferentes áreas de atuação aproveitando as próprias dinâmicas do mercado e alguma sazonalidade, mas procuramos sempre novos negócios e oportunidades. Não queremos fazer o que toda a gente faz, optamos por ser diferentes, apostamos na diversificação e nas cadeias curtas de abastecimento e de proximidade, com foco na satisfação do cliente. Não privilegiamos os clientes espontâneos, mas apostamos em relações duradouras.
Que tipo de produtos produz?
Ao nível dos produtos trabalhamos um conjunto de produtos frescos, nomeadamente pequenos frutos (mirtilo, amora, framboesa, physallis, sabugueiro), morango, maracujá, kiwi e kiwi arguta, citrinos (laranja, limão, kumquat, limão caviar), maçã, cereja e castanha, hortícolas diversos e alguns exóticos, e ervas aromáticas.
Ao nível dos produtos transformados, temos muitas referências, com marca própria Quinta da Erva Doce, designadamente bolachas, compotas, infusões, azeite e sal aromatizado, frutos desidratados, chocolate e bombons, bolos, snacks, gelados, entre outros.
Qual o principal destino dos produtos que saem da sua quinta? Mercado nacional, internacional?
Mercados de proximidade principalmente. Também fazemos exportação, mas damos prioridade ao mercado local e nacional.
“Queremos melhorar a eficiência energética e ainda introduzir mais alguma tecnologia, mas para algumas delas temos que ganhar um pouco mais de escala”.
A agrotech já é uma realidade no seu caso? O recurso a tecnologia nas suas atividades é uma realidade?
É uma realidade com tendência a aumentar… já existem alguns mecanismos de controlo das condições climatéricas, das fertilizações e gestão de cadernos de campo bem como da gestão do pessoal nas colheitas, podas e outras operações culturais. Queremos melhorar a eficiência energética e ainda introduzir mais alguma tecnologia, mas para algumas delas temos que ganhar um pouco mais de escala.
Qual o impacto que a participação na academia do Centro de Frutologia Compal trouxe à sua estratégia de empreendedor?
A minha participação no Centro de Frutologia Compal em 2017 começou por ser um sonho e, de certa forma, uma aventura que iniciei, sabendo que seria um desafio ao estar com especialistas de várias áreas de norte a sul do país, a aprender mais sobre a fruticultura nacional. A Academia 2017 permitiu-me apreender novos conhecimentos e, sobretudo, aumentar a minha rede de contatos na área da fruticultura, mas também do marketing, de gestão de negócio, de sistemas de eficiência de energia e sistemas operativos agrícolas importantes para a gestão das explorações.
O mais aliciante nesta participação, foi certamente a possibilidade de estar com entidades, organizações, empresas e outros formandos formados nas mais diferentes áreas, ou seja, o networking que se estabeleceu. A par disso, a possibilidade deste networking aproximar fruticultores como eu, de empresas como a Sumol+Compal, com as quais poderemos, eventualmente, estabelecer negócios ou parcerias.
Em 2020, e fruto da aposta da Academia na formação digital e na inclusão de novos módulos sobre a digitalização do negócio da fruticultura, voltei a participar em mais uma edição. Esta possibilidade deve-se ao facto de a Academia encarar os desafios como o do confinamento como oportunidades e apostar em novos formatos e módulos de formação que interessam a todos os fruticultores. Isso é a possibilidade de continuar, ano após ano, a participar nas formações como forma de enriquecimento e crescimento do nosso negócio. Uma oportunidade que agradeço ao Centro de Frutologia Compal e que não deixo de aproveitar sempre que possível.
“O maior desafio para mim ao nível da inovação está na logística, pois queremos inovar na forma de embalamento e transporte (…)”
Em que áreas pretende inovar?
Existem muitas áreas que pretendo inovar. Desde logo ao nível de produção, estamos a testar culturas novas e ao mesmo tempo experimentar novas formas de produzir as mesmas culturas. O maior desafio para mim ao nível da inovação está na logística, pois queremos inovar na forma de embalamento e transporte, na forma como os nossos produtos chegam aos nossos clientes. Estamos a estudar algumas novidades também ao nível de processamento dos produtos sobrantes.
Como gostaria que o seu projeto estivesse daqui a um ano?
Espero que esteja mais consolidado naquilo que já existe e como vai sofrer neste final de ano um aumento considerável da área de produção (cerca de 140%), espero daqui a um ano, um aumento de 40% no número de referências, um aumento de 60% do volume de vendas de frescos e 150% de vendas nos transformados. Espero que isto se alcance com a mudança de estratégia comercial e de marketing que está a decorrer.
“A um empreendedor pede-se normalmente capacidade de trabalho multidisciplinar, dinamismo, persistência (…)”.
Que caraterísticas são imprescindíveis a um empreendedor agrícola?
A um empreendedor pede-se normalmente capacidade de trabalho multidisciplinar, dinamismo, persistência, método, organização, capacidade de se adaptar às circunstâncias, com resiliência e capacidade inovativa, entre outras.
Ao empreendedor agrícola pede-se além destas, uma capacidade de sofrimento suplementar, pois além de todas as dificuldades adjacentes ao próprio negócio acresce a incerteza dos fatores climáticos e a perecibilidade dos produtos.
O clima condiciona o desenvolvimento das culturas, a determinação de épocas de colheita e assim define os preços a receber, regula o aparecimento de algumas pragas e doenças que condicionam a qualidade e quantidade produzida. Os produtos agrícolas frescos têm na sua maioria, um tempo de prateleira relativamente curto, porquanto se não forem vendidos naqueles dias ou semanas terão que ter um outro destino muitas vezes depreciado economicamente por força da perda de peso/volume ou das perdas por problemas fitossanitários ao longo do tempo de armazenamento. Não se podem armazenar, de uma maneira geral, por longo período de tempo, para uma época em que tenham melhor preço no mercado.
Outra característica penalizante do negócio agrícola é que se o ano correr mal só é possível corrigir ou tentar recuperar o prejuízo um ano depois (e se este correr bem…), enquanto em outros negócios é possível recuperar o eventual prejuízo muito mais rapidamente.
“Existem apoios, as medidas têm bons princípios subjacentes, mas julgo que não são eficazes. A análise demorada, a forma de distribuição dos apoios, o tipo de investimentos apoiados, na minha opinião penalizam fortemente quem quer ser agricultor”.
Os novos projetos agrícolas têm algum tipo de apoio governamental?
Existem apoios, as medidas têm bons princípios subjacentes, mas julgo que não são eficazes. A análise demorada, a forma de distribuição dos apoios, o tipo de investimentos apoiados, na minha opinião penalizam fortemente quem quer ser agricultor. Alguém que aposte na produção frutícola e que tem de plantar uma qualquer espécie que começa a dar algum retorno ao quarto ano de produção, tem que fazer uma candidatura a um apoio governamental, pelo menos três anos antes de preparar o terreno e até ter o dito retorno, com tudo a correr bem, tem seis a sete anos de despesas…
Assim desaparecem os capitais próprios que o agricultor possa disponibilizar, mas mais do que isso, desaparece o entusiasmo pela atividade. Isto tem certamente consequências dramáticas a médio prazo. Posso dizer que até ao momento ainda não recebi qualquer apoio. Tenho candidaturas submetidas, das quais espero respostas e sobretudo financiamento e até ao momento nada recebi. Com apoio governamental teria já certamente, quadruplicado a minha área de produção.
“Existe um potencial agrícola enorme, mas lembre-se que grande parte do território agrícola está abandonado. É preciso alterar políticas (…)”
Em Portugal há potencial competitivo no domínio agrícola, concretamente no seu setor?
Existe um potencial agrícola enorme, mas lembre-se que grande parte do território agrícola está abandonado. É preciso alterar políticas, é necessário perceber (ainda mais nestes tempos) da importância da autonomia agroalimentar que o nosso país deve ter, de criar uma certa independência do mercado externo, e sobretudo direcionar políticas de investimento estratégicas para este setor.
Ao nível da horticultura e sobretudo da fruticultura, o nosso país tem condições climáticas de exceção para potenciar o desenvolvimento da maior parte das culturas. Com as dinâmicas certas pode tornar-se este potencial de produção num potencial competitivo ao nível da comercialização.
Acredita que a criação de cluster agrícola no nosso país possa ser uma possibilidade?
Acredito na criação de um cluster agrícola e acredito fortemente e há muitos anos, na criação de clusters frutícolas regionais aproveitando as características de solo e clima específicas das regiões para determinado tipo de culturas. Permitiria a centralização de equipamentos e investimentos, quer privados quer estatais, e uma especialização regional que concorreria para o aumento de produtividade e rentabilidade.
Respostas rápidas
O maior risco: A incerteza climática e a concorrência desleal.
O maior erro: Depender ou esperar por apoios governamentais.
A maior lição: Os ritmos de crescimento naturais.
A maior conquista: O reconhecimento das minhas marcas e da qualidade da produção.