Entrevista/ “O nosso foco nas tecnologias digitais e na inteligência artificial é o que nos distingue da concorrência”

Luísa Matos, CEO da Cleanwatts

“Um setor de energia carbono zero, onde sistemas descentralizados de produção renovável e armazenamento distribuído possam substituir os sistemas energéticos centralizados com emissões intensivas de carbono do passado”. É esta a visão da Cleanwatts para o setor da energia, segundo Luísa Matos, a mais recente CEO da empresa.

Luísa Matos é a nova CEO da Cleanwatts, empresa climate tech de Coimbra. Cofundadora da Cleanwatts e, até maio, Chief Innovation and Product Officer da empresa, Luísa Matos tem trabalhado ativamente na transformação verde e digital para desenvolver e fornecer soluções de ponta para um setor de energia mais descarbonizado, descentralizado, digitalizado e democratizado.

Com mais de 15 anos de experiência, Luísa Matos foi responsável pela gestão de mais de 65 projetos de inovação, investigação e desenvolvimento de produto, entregando soluções para Virtual Power Plants (VPPs), cidades inteligentes e eHealth. Assessorou e avaliou projetos de inovação disruptiva, inclusivamente para a Comissão Europeia.

Formada em Economia, com mestrado e MBA em Gestão da Inovação, tendo ainda frequentado uma pós-graduação em Estratégia e Inovação na Saïd Business School, na Universidade de Oxford, está a concluir o doutoramento em Estratégia e Marketing, com trabalhos de investigação sobre mercados locais de energia. Tem investigação publicada na área dos modelos de negócios dos mercados locais de energia e liderou o desenvolvimento de produtos para Comunidades de Energia Renovável.

Como encara esta nomeação como CEO da Cleanwatts?

Encaro com um misto entre grande responsabilidade e uma excelente oportunidade para liderar uma equipa de excelentes profissionais e contribuir para a transformação do futuro do setor da energia. Mais concretamente, com a nossa visão de criação de mercados locais de energia, alicerçados na implementação de comunidades de energia e acesso a tecnologia digital inovadora para uma maior eficiência e optimização do consumo e produção de energia renovável. Na Cleanwatts pretendemos contribuir ativamente para as metas de descarbonização e sustentabilidade da sociedade com grande foco no impacto positivo nas dimensões ambiental, social e económica.

Qual a sua missão enquanto CEO?

Para conseguirmos alcançar o nível de impacto que nos propomos, faz parte da minha missão, enquanto CEO, garantir que estamos devidamente preparados como organização para respondermos com eficácia e eficiência aos problemas dos nossos clientes, introduzindo produtos e modelos de negócio inovadores. Garantir que estamos, de facto, a acrescentar valor e a contribuir para uma visão de um futuro mais sustentável para os múltiplos stakeholders que nos rodeiam, sejam eles os nossos clientes diretos, os nossos investidores, os operadores do sistema elétrico e a sociedade em geral.

“A Cleanwatts já dispõe da tecnologia necessária para tornar possível a otimização a 100% dos sistemas de energia locais (…)”.

Quais os desafios que o setor da energia enfrenta hoje em dia?

A nossa visão para o setor da energia é clara: um setor de energia carbono zero, onde sistemas descentralizados de produção renovável e armazenamento distribuído possam substituir os sistemas energéticos centralizados com emissões intensivas de carbono do passado. Então, os desafios prendem-se com a forma de conseguirmos realizar essa visão. Especificamente, como acelerar a penetração de energia renovável distribuída, sistemas de armazenamento, e sistemas de gestão inteligente de energia? Alguns dos desafios que identificamos, prendem-se ainda com a pouca celeridade nos processos de licenciamento, nomeadamente, nos relativos a autoconsumo coletivo e comunidades de energia renovável, bem como na necessidade de aumentar a confiança dos consumidores finais e investidores, para que lhes seja cada vez mais claro os benefícios da transformação que estamos a promover. Estamos perante um claro caso de win-win para os vários stakeholders, mas para tal ser percepcionado existe uma grande necessidade de formação para uma maior literacia energética dos vários participantes na transição energética.

É também importante que os mercados de energia estejam corretamente estruturados para permitir o crescimento do tipo de tecnologias que referi, bem como novos modelos de negócio. Desde a criação de modelos de mercado que permitem partilha de energia local até à criação de mercados de flexibilidade energética. Deveria ser possível obter uma compensação do operador de rede quando deslastramos cargas como as de veículos elétricos, as baterias e outras cargas flexíveis.

A Cleanwatts já dispõe da tecnologia necessária para tornar possível a otimização a 100% dos sistemas de energia locais, assegurando ao mesmo tempo que qualquer pessoa possa beneficiar das poupanças que podem gerar. O principal obstáculo não reside, portanto, nas inovações tecnológicas, mas nos quadros regulamentares e de mercado que têm de ser adaptados para tirar o máximo partido destes avanços. Existe uma necessidade crítica de maior normalização internacional, a todos os níveis, o que inclui a harmonização dos regulamentos, das regras de acesso aos mercados e das normas de interoperabilidade entre sistemas para garantir maior rapidez e eficácia na adoção destas tecnologias.

Considera que os benefícios da inovação tecnológica e das energias renováveis têm chegado a um número cada vez maior de pessoas e empresas? O que ainda falta fazer?

Portugal tem, atualmente, cerca de 3.900 MW de potência solar instalada, o que representa aproximadamente 14% de penetração no mercado. Para atingir uma penetração total no mercado, é necessário ultrapassar vários desafios. Um dos principais desafios é a necessidade de sistemas adequados de armazenamento de energia, que se tornaram mais viáveis devido aos avanços na gestão das baterias e à redução do preço das mesmas. Estes avanços diminuíram o período de retorno do investimento das baterias para menos de cinco anos, tornando-as uma solução muito viável e prática. No entanto, mesmo com o armazenamento a resolver a questão do desequilíbrio energético, os processos de licenciamento podem continuar a ser um obstáculo. Com a implementação de melhorias significativas nos sistemas e processos de licenciamento, será possível aumentar drasticamente o número de pessoas e empresas que podem beneficiar da transição energética.

“Um futuro energético ideal para a Europa envolveria diretivas que fossem suficientemente flexíveis para acomodar as realidades energéticas únicas de cada Estado-Membro (…)”.

De que forma olha para a Europa em termos energéticos?

A Europa tem a vantagem de ter uma legislação federalizada no setor da energia – as leis adotadas criam as diretivas que deverão ser fáceis de adaptar para cada Estado-Membro. Por exemplo, as plataformas de equilíbrio energético MARI e PICASSO, e a RED II, que define as regras europeias de base para a criação das comunidades de energia renovável. No entanto, o desafio é que diferentes estados podem interpretar e adaptar estes regulamentos de formas diferentes.

Assim, o que foi planeado para uma diretiva nem sempre se concretiza e se torna uma verdadeira norma. De certa forma, é importante respeitar as realidades dos diferentes Estados-Membros. Por exemplo, França tem uma grande quantidade de energia nuclear, e Espanha e Portugal têm melhores condições solares do que a Suécia. Um futuro energético ideal para a Europa envolveria diretivas que fossem suficientemente flexíveis para acomodar as realidades energéticas únicas de cada Estado Membro, mas suficientemente consistentes para implementações mais homogéneas a nível europeu. A energia deve ser encarada como um bem público, precisamos de legislação que recompense a inovação e que dê prioridade ao benefício social, em vez de procurar apenas maximizar o lucro.

Qual acha que tem sido o contributo da Cleanwatts no setor da energia?

A Cleanwatts tem procurado contribuir ao longo dos anos com as suas inovações tecnológicas, nomeadamente com as suas ferramentas digitais para a gestão das comunidades de energia, para a eficiência energética e capacidade para tornar a procura mais “despachável”. Com as inovações ao nível dos modelos de negócio tem contribuído ativamente para a alteração do paradigma energético, onde cada empresa e cada família pode de facto ter um papel ativo na transição energética, seja enquanto consumidor de energia renovável produzida localmente, seja por disponibilizar a flexibilidade das suas cargas energética. Dessa forma, terão uma oportunidade para descarbonizar, poupar nos custos de energia e rentabilizar os seus investimentos na transição.

Projetos para o futuro da Cleanwatts?

Como criadores do primeiro projeto de autoconsumo coletivo em Portugal já em 2021, temos sido pioneiros na implementação de instalações solares locais para comunidades. Mas a simples criação de instalações fotovoltaicas não é suficiente por si só. A ideia de uma Comunidade de Energia é a de uma comunidade que não só produz a sua própria energia como também a consome – isto é algo que precisa de ser gerido através da tecnologia.

Nos próximos anos, vamos concentrar-nos mais na criação de Comunidades de Energia com produção e consumos otimizados – Comunidades de Energia Inteligentes -, onde as cargas “despacháveis” podem contribuir para aumentar significativamente o autoconsumo na comunidade e ainda poder fornecer serviços de apoio ao operador da rede. O nosso foco nas tecnologias digitais e na inteligência artificial é o que nos distingue da concorrência, que se concentra essencialmente na instalação de centrais de produção que não são geridas de forma inteligente.

De que forma a sua formação a tem ajudado a construir um percurso na área da tecnologia?

A formação inicial em economia que tirei na Universidade de Coimbra é uma excelente base para os desafios diários na gestão de uma empresa. A essa formação acrescentei um mestrado focado na área de inovação e depois uma pós-graduação em estratégia e inovação da Universidade de Oxford, que ajudaram significativamente a desenhar uma estratégia de crescimento para a empresa alicerçada em produtos e modelos de negócio inovadores. Com o trabalho de investigação que tenho vindo a conduzir no meu doutoramento no tema dos mercados locais de energia e o contributo da inovação nos modelos de negócio para a transformação verde e digital, permitiu-me desenvolver as ferramentas e o conhecimento necessário para criarmos uma proposta de valor com enorme potencial de criar um impacto muito positivo no setor da energia.

“A função de CEO é ser uma espécie de maestro de uma orquestra. Não é necessário ser o melhor em todas as áreas – mas é preciso ter a capacidade de fazer com que todos toquem em conjunto e em perfeita harmonia”.

Como define o seu estilo de liderança?

A função de CEO é ser uma espécie de maestro de uma orquestra. Não é necessário ser o melhor em todas as áreas – mas é preciso ter a capacidade de fazer com que todos toquem em conjunto e em perfeita harmonia. O que motiva as pessoas é ter uma visão partilhada. É preciso ver o panorama geral e orientar todos, de forma eficaz, para que este se torne realidade. É também fundamental ser capaz de inspirar as pessoas a tornarem-se a melhor versão de si próprias em cada dia. Não é tão simples como apenas ter a visão e transmiti-la, mas sim é necessário saber ouvir, compreender, sentir empatia e ser o condutor da missão. Um CEO bem-sucedido aproveita a sua posição única para unir as diversas perspectivas, transformando os pontos fortes individuais numa força eficaz e coesa, que faz avançar a organização.

Qual foi o momento mais desafiante da sua carreira?

A minha carreira tem passado por muitos momentos desafiantes. Trabalhar numa scale-up é um desafio diário onde todos os dias temos de lidar com novos problemas e novas oportunidades. Saber focar no que importa para fazer a diferença é essencial. Posso assinalar o período do Covid-19 como tendo sido um momento especialmente desafiante dadas todas as incertezas associadas em termos de negócio com clientes a encerrarem e suspenderem contratos. Foi um período onde tivemos de “viver um dia de cada vez”, procurando tomar as melhores decisões para melhor servir os nossos clientes e garantir a segurança dos nossos colaboradores.

E qual o feito que ao longo da sua carreira mais se orgulha?

Tenho um grande orgulho de, em conjunto com os meus cofundadores e os contributos de todos os colegas na empresa, termos sido pioneiros no lançamento das soluções para comunidades de energia. Foi um trabalho de anos de desenvolvimento de tecnologia inovadora, testando também múltiplos modelos de negócio e estratégias de envolvimento de membros em ambiente de investigação e pilotos em ambiente real, que quando finalmente tivemos o enquadramento legal apropriado puderam avançar para o mercado.

Que conselhos daria a um jovem que quer fazer carreira na área da tecnologia?

Muitas pessoas dizem-nos para seguirmos a nossa paixão, o que geralmente é um mau conselho. É importante procurar objetivos que sejam pessoalmente significativos para nós – mas também ser pragmático. Não quero com isto dizer que não sou apaixonada pelas energias renováveis, apenas que a paixão não é suficiente. O conceito Ikigai é útil neste contexto, para procurar uma carreira que: primeiro, o mundo precisa, segundo, para a qual se é pago, terceiro, numa função em que se é bom e quarto, é algo que adoramos. Talvez não se encontre algo que se enquadre perfeitamente nos quatro, mas é um bom objetivo a perseguir.

Respostas rápidas:
Maior risco:
Deixar que a aversão ao risco impeça a inovação.
Maior erro: Gerir com base em “esperança”.
Maior lição: Focar no que realmente importa e que pode fazer a diferença.
Maior conquista: Fazer o que gosto todos os dias.

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