Opinião
Nem bom senso, nem consenso
Sobre este nosso mundo atual, que evidencia não estar a seguir o melhor curso, por nossa causa, sobretudo, é fácil argumentar que falta tanto bom senso como consenso. Apesar disso, nenhum dos conceitos nos levará para melhores caminhos. Tanto a causa como a solução poderão residir no senso comum.
Usamos a expressão “bom senso” se queremos abonar alguém. Nomeadamente, a sua capacidade de decidir ou de agir de forma correta. Ponderação, razoabilidade, sabedoria, perspicácia ou circunspeção são qualidades commumente atribuídas a quem tem bom senso. A expressão está sujeita a uma dose enorme de subjetividade e de preconceito, sobretudo pela presença de “bom”, que pertence ao grupo de palavras com maior grau de relatividade. No que respeita a “senso” a situação é menos tumultuosa: quer dizer “sentido”, no duplo significado “direção” e “capacidade de sentir”, e também capacidade para pensar e para ajuizar de forma clara.
Curiosamente, em relação ao senso, o que notamos é a sua falta e não o seu contrário, embora exista o “contra-senso”. Não se acusa alguém de ter “mau senso”, mas uma pessoa que é imprudente, impulsiva, imponderada, inconsciente e irritante terá um bom senso omisso. Na verdade, nem é necessário fazer referência a “bom” porque a “falta de senso” basta para passar a mensagem.
Não é, portanto, uma dicotomia pura. Não se trata de um conceito e do seu oposto. Não está ao mesmo nível de verdade-mentira, por exemplo. Tal deve-se à inexistência de critérios de distinção objetivos. Pelo contrário, como procurei evidenciar, as qualidades de quem tem senso ou a sua falta estarão sujeitas ao senso de quem está a avaliar, passando a redundância. É assim mesmo que funcionamos quando procuramos qualificar características de pessoas [1]. Simplificando, é habitual recorrermos ao senso comum quando avaliamos pessoas.
O senso comum é um conceito que engloba um “conjunto de opiniões ou ideias que são geralmente aceites numa época e num local determinados”[2]. No fundo poder-se-á dizer que são as “verdades” construídas e seguidas pelo povo, pelos comuns, de determinadas época e geografia. A bem da clareza, por verdade deve-se entender um conjunto de crenças, preposições e preconceitos, transitórios e voláteis. Aliás, enquanto conceito, o senso comum terá surgido para contrastar com o “senso científico”, estando o primeiro isento da investigação detalhada que serve para se alcançarem “verdades” mais fundamentadas e, espera-se mais reconhecidas. Em teoria, verificando-se com frequência na prática, “as verdades” que compõem o senso comum são mais lentas a evoluir, mais resistentes à mudança, portanto, do que as conclusões produzidas pela ciência ou pela filosofia[3].
Esta ideia pode parecer contraditória ou paradoxal porque atribuímos mais lentidão ao método científico e aos processos filosóficos. A razão é simples: o senso comum é composto pelas aprendizagens que resultam da experiência do dia a dia e é também aí, nas nossas rotinas, que as aplicamos. Por isso, não há necessidade de serem revistas nem repensadas. Por isto, incorrem no risco de matar a curiosidade porque, precisamente, a curiosidade resulta da não conformidade com as explicações que já temos para o que nos vai acontecendo[4].
Não raras vezes, as noções de senso comum e de bom senso entram em choque, podendo mesmo fundir-se, tornando-se indistintas, como resultado. Nestas situações, os efeitos podem ser perigosos. Como exemplo, partilho o caso de uma pessoa com quem trabalhei. É uma pessoa sobre quem diria, sem qualquer dúvida, que tem muito bom senso. Além desse conjunto de características, tinha um currículo impressionante. Acumulara décadas de experiência e de trabalho de excelência, incluindo funções de coordenação, evidenciando-se nas dimensões técnica e humana, num setor particular de atividade não empresarial.
Quando começámos a trabalhar tinha recentemente aceite um desafio numa outra área, apesar de no mesmo setor, numa empresa. Assumiu diretamente um cargo de coordenação com grandes expressão e importância. Apesar de estar habituada a níveis de pressão e de volume de trabalho bastante altos, sentia que a sua qualidade de vida tinha decaído e que não estava a conseguir solucionar tudo o que tinha encontrado e lhe era pedido para resolver. Esta situação durou meses, quase um ano, e durante este período foi-lhe sendo dito pelas pessoas a quem reportava que não estava a cumprir com as expetativas, o que contribuiu para a instalação de dúvidas sobre a sua capacidade e sobre se teria tomado a decisão certa ao mudar de carreira.
O senso comum do mundo empresarial é de uma exigência sem fim em relação às pessoas. Têm de dar sempre mais e fazer melhor. Caso não se esteja a atingir o que é esperado é porque “não estão a saber gerir as prioridades”, “não estão a saber delegar” ou “talvez não tenham o perfil certo”. Se a pessoa cede e desiste confirma e reforça o tal senso comum. Se a pessoa colapsa é porque não era resiliente o suficiente ou, pior, era fraca, e o efeito é o mesmo. Felizmente, o bom senso desta pessoa, fê-la colocar as hipóteses: “será que estão a exigir demais?”; “será que o volume de trabalho é demasiado?”; “será que não há pessoas suficientes para o que se pretende fazer?”. Perguntas como estas voltam a aguçar a curiosidade, pedindo explicações novas, alternativas às que lhe foram sendo indicadas.
Hoje todo o tipo de senso se parece confundir. Por um lado, a ciência engana-nos – investigações encomendadas, resultados “martelados” que servem interesses outros que não a dita “verdade científica” – ficando nós a duvidar das suas conclusões. Por outro, a proliferação de meios de publicação e de acesso às opiniões de grande parte dos humanos leva a que verdades comuns e até banais sejam apresentadas e defendidas como mais do que científicas: absolutas e perenes.
Se o conhecimento e a verdade provenientes das ciências eram destinados às elites, hoje as elites intelectuais e culturais são as que se afastam tanto do senso comum como das verdades que resultam da ciência. Hoje as “elites“ definem-se pela busca e pelo uso do “bom” bom senso, que implica um compromisso com uma integridade que permita buscar não apenas os factos como avaliar e julgar todas as proposições e preconceitos, começando com os dos próprios. Um compromisso com ir além da pós-verdade em direção a uma “trans-verdade”: uma verdade que atravesse as verdades.
Tal conceito, se é que tem legitimidade para continuar a existir, torna mais difícil a reunião de consensos. E tão difícil é conseguirem-se consensos em relação ao que é bom senso, por exemplo. Além de difíceis, argumento que não são desejáveis, na linha do recente texto do colega José Crespo de Carvalho[5], nesta mesma publicação. Consenso implica uma conformidade ao pensamento da maioria, aproximando-se da definição de senso comum. Literalmente significa “ter o mesmo senso”, ou seja pensar e sentir da mesma maneira. Na minha experiência, tal é muito difícil e, lá está, indesejável, entre pessoas. Diferentes ideias e perspetivas são uma riqueza, saibamos nós construir a partir delas[6]. Uma das formas de construir é através do apuramento dos bons sensos, individual e coletivo, e procurando reformar o senso comum, quando nos ofende mais do que apoia.
[1] ‘Das competências “moles” – Parte II: Deixemos de lhes chamar competências’
[2] ”Senso comum”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa.
[3] ”O tempo da sabedoria”
[4] “Abraçar a curiosidade”
[5] ”O consenso é a ausência de liderança”
[6] ”A literalidade mata o entendimento”