Entrevista/ “Já envolvemos hospitais e médicos na utilização dos nossos produtos celulares em contexto experimental”

“O apoio aos futuros pais na fase mais importante das suas vidas que é a gravidez e a chegada de um bebé continuará a ser o principal foco da Crioestaminal, com a promoção de diversas iniciativas que pretendem acompanhar e guiar as famílias portuguesas neste momento especial”, afirmou Mónica Brito, CEO da empresa sediada em Cantanhede, que assinala este ano 19 anos e que não descarta “o desenvolvimento da área de novas terapias celulares”.
19 anos. 19 tratamentos. Já são mais de 120 mil as famílias portuguesas que têm as células estaminais do cordão umbilical dos seus filhos guardadas na Crioestaminal, tendo o laboratório libertado amostras para 19 utilizações terapêuticas em Portugal, Espanha e EUA.
Sediada no Biocant Park, em Cantanhede, a Crioestaminal é reconhecida por ser o maior banco de criopreservação da Península Ibérica e um dos mais relevantes da Europa.
O seu volume de negócios em investigação e inovação tecnológica já se traduz em mais de 10 milhões de euros investidos num conjunto de projetos e parcerias com universidades portuguesas que visam expandir a aplicação clínica das células estaminais. Daqui resultaram quatro patentes para novas aplicações – nas áreas do cancro, doenças cardiovasculares ou pé diabético, bem como o lançamento de um novo laboratório para produção de medicamentos direcionados para terapias experimentais.
Em entrevista ao Link To Leaders, Mónica Brito, CEO da Crioestaminal, fala do contributo da empresa para o avanço da ciência e sobre os seus projetos para o futuro.
No ano em que se assinala o seu 19º aniversário, que balanço faz da Crioestaminal?
Um balanço muito positivo. São quase duas décadas de consolidação e de crescimento, em diálogo permanente com as cerca de 120 mil famílias que confiam em nós, e com uma interação crescente com hospitais e centros de investigação clínica, de que já resultaram quase duas dezenas de tratamentos. Destaco, ainda, o nosso investimento em investigação e inovação, que já é superior a dez milhões de euros investidos em parcerias e projetos com universidades portuguesas, visando expandir a aplicação clínica de células estaminais.
O nosso percurso, pautado pela qualidade e perseverança, tem sido reconhecido não só em Portugal, pelas famílias, pelos parceiros de investigação e pelas unidades de saúde, mas também internacionalmente – a Crioestaminal é o único laboratório europeu com acreditação da Association for the Advancement of Blood & Biotherapies (AABB), quer para o processamento de sangue quer de tecido do cordão umbilical.
Quais têm sido os maiores desafios?
Temos tido alguns. Desde logo, ultrapassar a resistência quanto à perceção da utilidade das células estaminais, quer relativamente ao tratamento de doenças, quer quanto à melhoria da qualidade de vida do individuo, de uma forma geral. Os ensaios clínicos que têm vindo a ser desenvolvidos e os tratamentos realizados com sucesso, com amostras de células estaminais criopreservadas, têm contribuído para evidenciar o potencial desta área tão promissora da medicina. No entanto, este trabalho de divulgação e de informação é um trabalho contínuo, sobretudo junto do nosso público-alvo, que são os futuros pais e que estão sempre a renovar-se.
Em todo o mundo, já foram realizados mais de 45 mil tratamentos com células estaminais do sangue do cordão umbilical, em adultos e crianças, no tratamento de mais de 90 doenças. O Grupo Famicord, ao qual pertencemos já libertou mais de 1 800 amostras de sangue e tecido do cordão umbilical para tratamentos em toda a Europa, 19 dos quais realizados com amostras guardadas pela Crioestaminal. Se considerarmos outras fontes de células estaminais como a medula óssea, o sangue periférico ou o tecido adiposo estamos perante um universo de mais de 4 mil tratamentos, considerando tratamentos personalizados produzidos pelos nossos laboratórios do grupo Famicord.
“Temos a responsabilidade de informar a sociedade sobre a importância das células estaminais, particularmente as do cordão umbilical que todos os dias constituem um desperdício resultante do parto”.
O que é que a maioria dos portugueses ainda não sabe sobre células estaminais?
De um modo geral, nós portugueses, somos bem informados, sendo a notoriedade das células estaminais bastante elevada em Portugal, i.e., grande parte da polução já ouviu falar de células estaminais. Contudo, não há um verdadeiro conhecimento quanto ao tema, não sabemos para que servem, efetivamente, qual o seu potencial atual e futuro de utilização clínica, quais são as oportunidades para a sua colheita, o que distingue as diferentes fontes de células estaminais e como ficam guardadas por longos períodos.
Por este motivo, a nossa atividade de comunicação passa por clarificar diariamente estas questões, uma vez que temos a responsabilidade de informar a sociedade sobre a importância das células estaminais, particularmente as do cordão umbilical que todos os dias constituem um desperdício resultante do parto e que podem, efetivamente, ser uma opção terapêutica.
Até agora quantas famílias portuguesas já guardaram as células dos seus bebés com a ajuda da Crioestaminal?
Até ao momento, já confiaram à Crioestaminal as suas células estaminais cerca de 120 mil famílias portuguesas, o que se traduz numa enorme responsabilidade, mas também num grande reconhecimento do trabalho que temos desenvolvido.
Quais as estratégicas que têm implementado para que mais famílias tenham acesso ao serviço de criopreservação?
Temo-nos aproximado das necessidades das famílias. Trabalhamos muito a componente informativa, a lógica de proximidade. Investimos em reconhecimento, em compreensão. As nossas sessões informativas assentam na troca de ideias com os futuros pais e na evidência científica. A decisão das famílias guardarem as células estaminais resulta, primeiramente, do seu esclarecimento quanto ao tema.
Conhecendo as necessidades das famílias, tentamos também adaptar as nossas opções de acessibilidade, para que a capacidade financeira de uma família não limite a sua decisão de guardar as células estaminais. Para além das tradicionais soluções de financiamento bancário, as famílias têm, com a Crioestaminal, a possibilidade de reduzir o esforço financeiro inicial através do pagamento de um valor de entrada acessível, seguido de um valor anual ao longo do período de armazenamento das células estaminais. Temos também programas especiais de acesso para jovens pais, até aos 30 anos, e para famílias que tenham um risco acrescido de desenvolvimento de doença suscetível de ser tratada com as células estaminais colhidas no parto.
Quais as vossas principais preocupações na preservação das células?
A nossa principal preocupação é que as amostras de células estaminais que guardamos estejam em condições ótimas no caso de uma eventual utilização. Assim, a Crioestaminal testa individualmente todas as amostras, quer de sangue, quer de tecido do cordão umbilical que recebe, com o objetivo de assegurar a viabilidade de todas as amostras que guardamos e de modo a disponibilizar o máximo de informação possível aos pais e aos médicos que irão utilizar estas células. Temos ainda um programa integrado de controlo da estabilidade das amostras criopreservadas ao longo do tempo no nosso laboratório, em Cantanhede.
Mantemos, também, o contacto regular com as famílias ao longo do tempo, para que possam ir acompanhando a evolução quer da Crioestaminal, quer da área das células estaminais, e recebemos as famílias nas nossas instalações, onde podem ver os processos laboratoriais a acontecer e falar com os nossos especialistas. A transparência é um fator de maior relevância num serviço tão delicado e de tanta responsabilidade.
Que iniciativa têm lançado para contribuir para o crescimento das terapias com células estaminais? Que projetos de investigação estão agora a desenvolver?
De facto, a Crioestaminal está focada em alargar a aplicação de células estaminais, para além das doenças atualmente tratadas, possibilitando o acesso a terapias personalizadas baseadas em células estaminais, sendo este o foco dos projetos de I&D que temos vindo a desenvolver em conjunto com os nossos parceiros e que deram já origem a quatro patentes internacionais.
O conhecimento gerado e a experiência da nossa equipa de I&D permitiu-nos reunir recentemente uma nova equipa de produção de medicamentos para terapias avançadas, numa unidade laboratorial com certificação GMP (Good Manufacturing Practices) que assegura as boas práticas de fabrico deste tipo de produtos. Esta área, neste momento, encontra-se a desenvolver e a produzir vários medicamentos inovadores à base de células estaminais, para serem aplicados em ensaios clínicos que estamos a desenvolver com vários hospitais portugueses. De entre estes ensaios clínicos destacaria, o StrokeTherapy, no qual vão ser usadas células estaminais da medula óssea para tratar sequelas resultantes de situações de Acidente Vascular Cerebral; o RescueCord, em que através da administração de células estaminais do sangue do cordão umbilical a recém-nascidos com encefalopatia hipóxico-isquémica, vamos procurar minorar os efeitos da privação de oxigénio durante o parto.
Mais recentemente, no âmbito da Covid-19, desenvolvemos um medicamento experimental (SLCTmsc02) à base de células estaminais expandidas a partir de amostras de tecido do cordão umbilical, para tratar os casos mais graves de infeção respiratória aguda, no âmbito de um ensaio clínico que está também a ser desenhado em conjunto com algumas unidades hospitalares do país. Este medicamento em particular tem como objetivo ser utilizado em contexto de ensaio clínico ou em tratamentos com isenção hospitalar, não só em doenças do foro respiratório, mas também em doenças autoimunes e do foro neurológico, onde estas células estaminais mesenquimais podem ter efeitos benéficos em doentes graves ou que não respondem às terapias convencionais.
“A nova unidade de produção foi o alcançar de um pilar fundamental para a Crioestaminal poder avançar na sua cadeia de valor e passar a disponibilizar medicamentos aprovados para uso em terapias avançadas”.
Inauguraram há dois anos a unidade de produção de medicamentos de terapia celular. Que balanço faz desta unidade e que outros projetos se seguem?
As terapias convencionais com células estaminais estão bastante consolidadas ao nível daquilo que é a tecnologia e a aplicação das células. As terapias avançadas emergentes com as novas fontes de células estaminais precisam de um investimento constante quer em I&D, quer na produção dos medicamentos com carácter experimental aprovados para utilização clínica. A nova unidade de produção foi o alcançar de um pilar fundamental para a Crioestaminal poder avançar na sua cadeia de valor e passar a disponibilizar medicamentos aprovados para uso em terapias avançadas.
Com esta mais valia, já envolvemos hospitais e médicos em Portugal na utilização dos nossos produtos celulares em contexto experimental com vista ao desenvolvimento de novas terapias. Podemos, assim, dizer que o balanço desta nova unidade é muito positivo, mas continuamos a ter um grande trabalho pela frente para que estas novas tecnologias possam estar disponíveis para todos.
E o Banco de Investigação, qual tem sido o seu contributo?
O Banco de Investigação tem sido essencial no aprofundamento da investigação científica no nosso país e o seu funcionamento demonstra a compreensão progressiva dos portugueses relativamente à importância das células estaminais do sangue do cordão umbilical. As amostras doadas à Crioestaminal para os seus projetos de I&D são fundamentais para que possamos continuar a desenvolver novos medicamentos e novas terapias celulares.
Investem, anualmente, cerca de 10% do seu volume de negócios em atividades e projetos de Investigação e Desenvolvimento. Que outras áreas são consideradas prioritárias para a empresa?
O apoio aos futuros pais na fase mais importante das suas vidas que é a gravidez e a chegada de um bebé continuará a ser o principal foco da Crioestaminal, com a promoção de diversas iniciativas que pretendem acompanhar e guiar as famílias portuguesas neste momento especial.
Naturalmente, que o desenvolvimento da área de novas terapias celulares é outro dos grandes focos da Crioestaminal, de modo a contribuirmos ativamente para a medicina personalizada do futuro e, desta forma, darmos acesso a cada vez mais opções de tratamento com células estaminais, algo que sabemos ser de extrema importância para os pais que esperam agora pelo nascimento de um filho, mas também para a sociedade em geral.
A Crioestaminal foi distinguida pelo seu desempenho de inovação com o Estatuto Inovadora, atribuído pela COTEC Portugal. A que se deve este reconhecimento?
Ao longo da sua existência, a Crioestaminal não se focou apenas em ser um banco de tecidos e células, tendo investido os seus recursos no desenvolvimento de tecnologias que possibilitem aumentar e melhorar os tratamentos atualmente existentes com células estaminais e, desta forma, retribuir às famílias que confiaram no nosso banco e à sociedade em geral, o reconhecimento e a confiança no nosso serviço. Para nós, esta é a razão deste reconhecimento atribuído pela COTEC.
Como avalia a inovação na área da ciência e da saúde no nosso país?
Portugal tem vindo, ao longo das duas últimas décadas, a observar um crescimento muito significativo na área de I&D, nomeadamente na saúde, quer através do número crescente de investigadores e de publicações científicas, quer através do aumento do investimento em investigação e inovação.
Temos, naturalmente, condições para crescer mais, para sermos mais fortes. A excelência das nossas unidades de saúde e dos seus profissionais, e a qualidade elevada dos investigadores e das unidades de investigação permitem-nos acreditar num crescimento sustentado, numa relevância cada vez maior. Coloca-se o desafio de concentrar este conhecimento e este potencial no nosso país e exportar mais inovação e investigação do que investigadores por nós formados.
Quais os desafios que se colocam à medicina regenerativa hoje em dia?
Conseguir corresponder em tempo útil às elevadas expectativas que estão criadas. E conseguir acompanhar as necessidades das famílias e dos doentes. Seja numa doença rara, seja numa doença de elevada prevalência, a investigação e a inovação científicas têm sempre de recuperar o intervalo entre a descoberta da doença e a procura por novas soluções, soluções essas que devem corresponder às necessidades de todas as famílias e doentes, não estando apenas ao alcance de alguns.
A nível mundial, que inovações destaca na investigação científica nesta área?
Destacaria, não querendo ignorar todos os trabalhos, as várias centenas de estudos que estão a ser realizados em todo o mundo com células estaminais, não posso deixar de reconhecer o trabalho que tem vindo a ser feito na procura de soluções com recurso a células estaminais para crianças com Perturbações do Espetro do Autismo, uma condição que afeta cada vez mais pessoas no mundo ocidental, bem como o desenvolvimento de um método eficaz para aumentar em laboratório o número de células estaminais presentes numa amostra de sangue do cordão umbilical, algo há muito esperado e que possibilitará tratar ainda mais doentes com recurso a estas amostras.
“Nestes dois últimos anos, (…) pudemos ver as start-ups portuguesas a adaptarem e a redirecionarem os seus projetos para a Covid-19, bem como a lançar produtos inovadores (…)”.
Considera que as start-ups portuguesas têm vindo a desenvolver soluções que respondem a necessidades específicas na saúde, no geral, e nas diversas áreas terapêuticas, em particular?
Nestes dois últimos anos, em virtude da pandemia que assolou o mundo, pudemos ver as start-ups portuguesas a adaptarem e a redirecionarem os seus projetos para a Covid-19, bem como a lançar produtos inovadores capazes de acompanhar as necessidades de uma medicina realizada à distância. A própria Crioestaminal redirecionou, muito rapidamente, para a doença provocada pelo SARS-CoV-2, um dos seus projetos em curso em 2020. Este é um exemplo de como Portugal tem capacidade para ser uma referência em inovação nas mais diversas necessidades que a medicina nos impõe.
Como perspetiva o futuro da Crioestaminal?
O futuro da Crioestaminal passará cada vez mais pelo seu envolvimento na área dos tratamentos com células estaminais, sejam elas provenientes de tecidos perinatais como o sangue e o tecido do cordão umbilical, seja de outras fontes de células estaminais. Temos vindo a trabalhar para nos tornarmos uma referência na área das terapias celulares, não só a nível nacional como também a nível internacional, enquanto parceiros europeus estratégicos para outros grupos de investigação clínica.
Respostas rápidas:
O maior risco: O insucesso dos ensaios clínicos que desenvolvermos.
O maior erro: Não inovarmos mais.
A maior lição: Na adversidade, procurar as oportunidades.
A maior conquista: Os tratamentos já realizados nestes quase 20 anos de atividade em Portugal.