Opinião

Fintech: um conceito não tão recente assim

Daniel Ibri, cofundador e managing partner da Mindset Ventures

O surgimento das instituições financeiras remete aos primórdios da sociedade. Bancos, instituições de crédito e demais organizações do tipo têm exercido um papel fundamental ao longo da nossa história, fomentando episódios de evolução estruturais como a revolução industrial, mas também dando corda a eventos tóxicos tais como o auxílio a ditadores para ocultarem suas fortunas.

Independentemente de como essas entidades têm beneficiado ou prejudicado a sociedade em certos casos, o fato é que elas exercem um papel fundamental na história da humanidade.

Na medida em que as instituições financeiras evoluíram, elas naturalmente especializaram-se em diferentes áreas, dando origem a uma ampla gama de segmentos dentro do mercado financeiro. Uma das categorias mais recentes do mercado financeiro é a aclamada fintech, termo que surgiu em 1993 para se referir àquelas instituições financeiras que fazem uso da tecnologia para aprimorar seus processos.

No entanto, apenas recentemente, com a criação do sistema bancário digital, este termo passou a ser amplamente adotado, ganhando enorme relevância no mercado de venture capital. Como se pode imaginar, atualmente fintech não se trata apenas de um segmento por si só no mercado financeiro — pelo contrário, hoje referimo-nos a fintechs a todas as empresas dentro os mais diversos segmentos do mercado financeiro que intensivamente utilizam tecnologia para operar.

Contrariando ao que a maioria de nós acredita, as fintechs já existem há bastante tempo, provavelmente há mais tempo do que se poderia imaginar que a tecnologia permitiria. Em 1866, um dispositivo chamado Pentelegraph foi criado com o intuito de verificar assinaturas pelos bancos, o que poderia ser considerada a primeira adoção de tecnologia para aprimorar processos financeiros. Tal invenção, entre diversas outras que surgiram até 1967, fazem parte do que hoje é conhecido como fintech 1.0, consistindo em experiências iniciais que fizeram uso das principais invenções tecnológicas e de finanças para agilizar processos burocráticos deste mercado.

De 1918 a 1967, os profissionais começaram a utilizar o telégrafo e o código Morse para digitalizar o dinheiro. As transferências já não exigiam que o dinheiro fosse transportado de um local para o outro e o património financeiro passou a consistir num mero registo de si mesmo em diferentes instituições financeiras, ao invés de pilhas de dinheiro ou ouro guardados em cofres nos bancos.

Em 1967, o conceito de fintech, tal como é conhecido hoje, passou pela primeira revolução quando o Barclays criou o primeiro caixa eletrónico, marcando o começo da era 2.0 das fintechs. No ano anterior, o telégrafo foi substituído pelo telex, possibilitando a conexão e comunicação entre as instituições financeiras que caracterizaram este período na história do mercado financeiro. Em 1971, a Nasdaq foi criada e, na década seguinte, as negociações eletrónicas e o online banking surgiram.

Não obstante, após a crise financeira de 2008, mais uma vez o mercado financeiro foi revolucionado, dando origem ao conceito atual de fintech 3.0, ou seja, aquelas instituições financeiras que, entre outros aspetos, foram responsáveis por desenvolver seus próprios ecossistemas para se relacionarem com os seus utilizadores. Em 2014, começaram a surgir as primeiras menções ao que seriam as fintechs 3.5, que possivelmente substituiriam os principais players do mercado, mas a verdadeira definição por trás desta categoria ainda carece de conteúdo.

Em resumo, as fintechs já existem há um bom tempo e sua definição (instituições financeiras que, através da tecnologia, automatizam processos financeiros e abrem espaço para inovação) permanece imutável. Desde 1866, a tecnologia vem evoluindo, assim como, por consequência, a forma pela qual as instituições financeiras a utilizam para aprimorar os seus processos e serviços. Por sorte, não vemos sinais de uma desaceleração na forma como a tecnologia vem evoluindo, portanto é difícil acreditar que a evolução das fintechs estagnará em algum momento nos próximos anos.

Não surpreendentemente, um mercado grande e com boas perspetivas
Todos os setores da economia são transformados na medida em que a tecnologia evolui. O setor financeiro não é exceção e tem evoluído e expandido-se drasticamente com a digitalização, abrindo a possibilidade para criação de processos financeiros mais eficientes e efetivos. O que atualmente é conhecido como o setor mais lucrativo da economia global, com uma margem média de 18% equivalendo a um lucro de $2,3 trilhões de dólares, deve tornar-se ainda mais representativo com o aprimoramento tecnológico, consequentemente impulsionando a relevância das fintechs no ecossistema global de venture capital.

A tecnologia aplicada ao sistema financeiro tem revolucionado o mercado bancário tradicional em quase todas as frentes, em aspetos que vão desde a melhoraria da experiência do consumidor até a utilização de data analytics para o aprimoramento dos processos internos das instituições. A inovação trouxe melhorias tão significativas ao mercado financeiro que, de acordo com o ranking da US Net Promoter da Forrester, de 2022, as pessoas tornaram-se mais fiéis às fintechs do que aos bancos nos Estados Unidos, uma transformação relevante comparada a não muito tempo atrás.

Entre as fintechs do nosso portefólio, trazemos um ótimo exemplo de uma empresa que tem beneficiado enormemente em função da experiência entregue ao consumidor. A Pay Joy, que oferece microcrédito utilizando smartphones dos devedores como garantia, adotou uma postura única durante a pandemia conseguindo fidelizar a maior parte dos seus clientes, oferecendo-lhes maior flexibilidade quanto ao pagamento das parcelas, sem optar por seguir à risca os contratos num momento tão delicado. Com tal iniciativa, a start-up não apenas melhorou exponencialmente a experiência do consumidor como também, consequentemente, a sua reputação perante o seu público-alvo.

A Future Family, outra empresa do nosso portefólio, também conseguiu cativar clientes através de outro caminho: no lugar de apenas fornecer linhas de financiamento para procedimentos de congelamento de óvulos e fertilização in vitro, a empresa também oferece uma experiência de saúde digital ímpar para que as suas clientes, as quais em geral não recebem a devida atenção médica e psicológica após a conclusão do procedimento. Desta forma, dificilmente se recorreria novamente aos empréstimos de bancos com o risco de enfrentar possíveis complicações pós-procedimento, dada a opção superior oferecida pela start-up.

O fato de que as fintechs têm revolucionado positivamente o mercado financeiro a um ritmo extremamente rápido não significa que estamos em vias de atingir a capacidade do mercado neste sentido. Atualmente, cerca de um quarto dos adultos ao redor do mundo ainda são desbancarizados, a maior parte concentrados no Médio Oriente , África e América Latina. Por outras palavras, dado o enorme mercado potencial ainda a ser explorado para serviços financeiros digitais, a indústria financeira já extremamente lucrativa deve tornar-se ainda mais relevante por meio do desenvolvimento das fintechs nos próximos anos.

O segmento das fintechs é responsável por 2% dos US$ 12,5 trilhões de receita gerados pelos serviços financeiros anualmente. Estima-se que a representatividade deste segmento sobre todos os serviços financeiros crescerá para 7% até 2030, alcançando uma receita de US$ 1,5 trilhão, com as fintechs de banking representando 25% do valor patrimonial total dos bancos globalmente, de acordo com o relatório Reimagining the Future of Finance do BCG. Até lá, apesar do crescimento exponencial das fintechs na América Latina, África e Médio Oriente, o mercado na Ásia-Pacífico deve tornar-se ainda mais relevante que o da América do Norte, atualmente a região mais representativa do setor.

Neste momento, outros países tendem a ver a América Latina, em especial o Brasil, como exemplo em infraestrutura financeira, dado o avanço tecnológico que o continente, de forma geral, já alcançou num amplo escopo de atividades financeiras que vão de crédito ao consumidor a open finance e pagamentos digitais. Com o surgimento de grandes players no mercado como o Nubank, atualmente o maior banco digital do mundo com mais de 75 milhões de clientes, a regulamentação local teve que acompanhar esta evolução exponencial, tornando-se uma das mais avançadas entre os mercados emergentes, sem ficar para trás em relação às medidas adotadas pela maioria dos países de primeiro mundo mais sofisticados financeiramente.

De acordo com o Relatório Fintech 2023 do Distrito, o Brasil atualmente conta com mais de mil fintechs, segmento que representa o maior mercado de tecnologia do país. Este setor pode tornar-se ainda mais representativo nos próximos anos, uma vez que o PIX, criado recentemente (sistema de pagamento instantâneo que revolucionou por completo o sistema financeiro brasileiro) provavelmente será o ponto de partida para a criação de inúmeras novas fintechs no curto prazo.

Como era de se esperar, a quantidade de deals ao redor do mundo envolvendo fintechs tem crescido simultaneamente à relevância que esse mercado vem ganhando. De 2014 a 2022, o número de investimentos em empresas deste segmento aumentou oito vezes, um volume possivelmente suprimido pela recente desaceleração do mercado e que deve continuar a crescer drasticamente ao longo dos próximos anos. O volume direcionado para investimentos em fintechs também tem aumentado gradualmente ao longo dos anos, confirmando a importância que o segmento vem ganhando no mercado de venture capital.

Apesar da previsão aparentemente precisa do rápido crescimento do mercado de fintechs separado por regiões geográficas nos próximos anos, é difícil prever como cada subsetor desta indústria se desenvolverá. Até há pouco tempo, a maior parte dos investimentos feitos em fintechs eram direcionados para indústria de pagamentos. Porém, em 2021, as start-ups relacionadas com criptoativos tornaram-se exponencialmente mais relevantes a ponto de, no ano seguinte, superarem as empresas de meios de pagamentos em termos de recursos captados. Independentemente da atenção que o mercado de cripto e blockchain atraíram nos últimos anos, a maior parte do que temos vivido neste segmento são apenas as primeiras experiências do que estas tecnologias serão capazes de nos proporcionar. As possibilidades oferecidas pelas estruturas da blockchain podem, num futuro não muito distante, revolucionar a maneira como as transações financeiras são executadas atualmente e atrair ainda mais investimentos do que podemos imaginar.

No entanto, se uma mudança tão radical ocorreu em apenas alguns anos, quem sabe que outro subsegmento de fintech poderá vir a surgir nos próximos anos e atrair mais investimentos do que qualquer outro até então?

O futuro: serviços financeiros integrados
Com o impressionante crescimento do setor de fintechs ao longo dos últimos anos, este mercado tornou-se um dos setores de venture capital mais relevantes para se investir, atraindo a atenção de alguns dos maiores VCs do mercado, muitos dos quais criaram fundos para investir exclusivamente neste tipo de empresa.

Em 2022, os investimentos em fintechs dominaram a alocação dos principais nomes de VCs como A16Z e Sequoia Capital, representando quase 25% dos seus investimentos. Mas os profissionais de venture capital não são os únicos por trás dos investimentos em fintechs — as Big Techs também perceberam que estavam perdendo inúmeras oportunidades no mercado financeiro, especialmente as empresas de retalho, as quais já estão amplamente lançando soluções financeiras relacionadas com o seu core business ou absorvendo start-ups sinérgicas com o propósito de impulsionarem as suas operações. No início de 2023, por exemplo, a Apple lançou a solução buy now pay later em parceria com o Goldman Sachs para permitir que os utilizadores paguem pelos seus produtos Apple de forma parcelada, impulsionando o preço das ações da empresa. Com as soluções tecnológicas tornando-se cada vez mais frequentes e acessíveis para qualquer negócio, milhares de exemplos semelhantes poderiam ser discutidos.

A frequência com que os serviços financeiros foram introduzidos aos serviços relacionados com outras indústrias cresceu a tal ponto que problemas relacionados com a segurança cibernética e compliance dentro das empresas começaram a surgir. Com tamanho crescimento no número e nos tipos de transações financeiras sendo executadas, os consumidores têm-se inadvertidamente tornado cada vez mais vulneráveis e expostos a vazamento de dados pessoais e ataques cibernéticos, de forma que até mesmo as transações baseadas em blockchain já não são totalmente seguras em certas circunstâncias.

As sinergias entre outros segmentos da indústria e as soluções financeiras evoluíram tanto que, em alguns casos, quando uma é aplicada à outra, torna-se difícil definir se certas empresas deveriam ser categorizadas como fintechs ou empresas de outros tipos. A Future Family, por exemplo, mencionada anteriormente, poderia ser considerada tanto uma fintech como uma healthtech. Com isso, podemos deduzir que os serviços financeiros passarão a ser cada vez mais integrados com outras soluções no futuro próximo, algumas vezes tornando-se o próprio core business na empresa e outras vezes fornecendo suporte para que o negócio principal funcione com mais eficiência.

No final do dia, definir se uma empresa é uma fintech ou compreender como seu core business se relaciona com finanças não é tão relevante. A evolução tecnológica que estamos vivenciando proporciona-nos diversas oportunidades para repensar os serviços financeiros e incorporá-los em praticamente qualquer modelo de negócio, ao invés de separá-los em instituições financeiras tradicionais independentes. Com tanto espaço a ser explorando, dado o número de adultos ainda desbancarizados, é difícil desacreditar no enorme potencial que o mercado de fintechs possui para os próximos anos.

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Daniel Ibri

Daniel Ibri

Daniel Ibri é Managing Partner e cofundador da Mindset Ventures, fundo de Venture Capital internacional focado em start-ups dos Estados Unidos e Israel, e foi considerado um dos mais influentes investidores de 2018 pela publicação Venture360. Além disso, também é membro do Comité de Empreendedorismo, Inovação e Capital Semente da ABVCAP, membro do Conselho de Administração da Artemisia e de diversas start-ups no Brasil e exterior, mentor da Endeavor, da ACE, do Quintessa, da Alchemist Accelerator e do Lisbon-Challenge, além... Ler Mais..

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