Opinião

“Só sei que nada sei” é a célebre e mal citada frase de Sócrates, o grego que terá vivido há mais de 2000 anos, para não haver confusões. Alegava o ateniense que só em relação à dúvida e ao desconhecimento é possível estarmos certos; a consciência da própria ignorância era, portanto, a última virtude.

Claramente, esta ideia não pegou. Parece ser na certeza, na ilusão de se saber-saber e na pretensão de julgar os outros errados que se encontra a sensação de segurança e a confiança.

Aliás, não será a fuga à dúvida e ao desconhecimento uma das razões de existir da ciência? A ciência, diferindo da filosofia ou da arte, existe para transformar perguntas em respostas. Na ciência, uma pergunta que fica por responder é um trabalho falhado. É certo que as respostas encontradas devem gerar novas perguntas, mas a sensação que deixam as respostas que se encontram, muitas vezes, ou em muitas pessoas, sobretudo não cientistas, é a de cessação da necessidade de voltar a perguntar. Uma resposta convicta e conclusiva mata a incerteza, a dúvida e a insegurança que, na dose certa, são o garante da tolerância e da aceitação. Sócrates era absolutamente seguro da sua humildade intelectual, o que implica alguma insegurança.

Os exemplos estão espalhados por todo o lado. É mais que sabido, e ignorado na mesma medida pelos frequentadores assíduos, que as redes sociais e as caixas de comentários dos jornais online são um antro de certezas e de acusações dos erros de raciocínio dos outros. O mesmo se pode verificar nas conversas de café, entre amigos, familiares ou nos locais de trabalho. Hoje as conversas são assim.

Recordo-me de ler um estudo[1] que categorizava dois tipos de pessoas no que diz respeito ao cruzamento entre a adaptabilidade e necessidade de controlo. Um dos exemplos a que os autores recorriam estava relacionado com o uso de sal, “à mesa”. As pessoas que pediam o sal antes de provar a comida eram consideradas mais rígidas em relação aos seus preconceitos, às suas opiniões. Eram também consideradas por terceiros como mais seguras e mais confiantes. Porém, eram as que tinham mais propensão para o autoritarismo, para a arrogância e para a intolerância. Como estavam “certas” de que seria necessário, pediam o sal sem precisarem de saber se havia real necessidade.

O segundo tipo de pessoas, as que, eventualmente, salgam o prato depois de uma prova, eram vistas como tendo maior capacidade de adaptação e de improviso. As primeiras “moldam” o mundo para satisfazer as suas necessidades enquanto as segundas “moldam-se” mais facilmente de acordo com as condições que o mundo lhes apresenta. Fica por saber qual destes tipos de pessoas mais poderá contribuir para mudar o mundo em que vivemos. Eu sei onde coloco as minhas fichas, porque acredito que a solução não estará no controlo.

No mundo do trabalho, creio que a combinação destes fenómenos com a estratificação hierárquica e os jogos de poder que lhe são inerentes, leva a que tantos contextos profissionais se tornem em espaços que degradam o nosso bem-estar ou mesmo a nossa saúde, física e mental. A verdade está mais nos andares mais altos e quem neles habita torna-se perito em apontar os erros dos que vivem mais abaixo. Tudo isto parece ser alimentado pelo medo de ser enganado ou pela presunção de que os outros não são maduros e inteligentes o suficiente para pensarem por si próprios. O resultado vê-se na dependência, vê-se na desresponsabilização. Resumindo, quem está acima sabe sempre a quantidade de sal certa, para si e para os outros; a convicção é tão forte que podem mesmo deitar sal em feridas que esta forma de estar ajuda a criar

No mundo dos negócios, em grande parte das culturas organizacionais, a tolerância à dúvida, à incerteza e ao erro são ainda mais proscritos do que na ciência e na academia. Pelo contrário, o paradigma que vinga é o do controlo, da obsessão pelo planeamento e pela previsão. Antigamente, a esses exercícios chamavam-se adivinhação ou pensamento mágico. Foi o que a ciência veio combater, diz-se. Historicamente, e hoje mais do que nunca, os negócios parecem alimentar-se de uma leitura parcial e utilitária da ciência, o que não é tão mau como a prática também recorrente do recurso à pseudociência. No fundo, os absolutamente certos, convictos e seguros farão de tudo para manter as suas certezas e as recompensas que delas resultam.

Tenho observado a adesão crescente a um movimento ideológico que parece recuperar ideias do estilo new age, que torna mais visíveis ideias de flexibilidade, de aceitação e de tolerância. Por princípio, o caminho parece ser muito interessante. Mas a falta de tolerância ao desconhecido, neste mundo globalizado e informado em tempo real, está de tal forma impregnada que torna essa suposta flexibilidade em rigidez. Por isso há também um perigo nos que se anunciam tolerantes, aceitantes e flexíveis. Quando estes e estas se tornam demasiado confortáveis, quando ficam inabaláveis em relação à sua flexibilidade ou a tentam impor aos outros, são tão rígidos quanto os que vivem certos de tudo.

Há dias tive uma conversa sobre vacinação, um tema fraturante. Embora seja a favor e tenha vacinado todos os meus filhos, a meio da conversa dizia a alguém que “era preciso respeitar, mesmo não concordando” quem não queria fazer o mesmo aos seus. A resposta do outro lado veio cheia de certezas, de intolerância à minha ideia e configurou-se numa quase acusação à minha própria posição: “desculpa lá, mas quem não vacina põe os outros em risco e quem deixa que isso aconteça faz o mesmo!”

A minha reacção foi desistir da discussão. Não o fiz pela contundência dos argumentos utilizados, mas pela intuição de que seria infrutífero. Fiquei amuado, pois percebi que a outra pessoa não entendia que estava a ser obtusa nos seus julgamentos. Para ser honesto, esta minha reacção não nasceu da dúvida nem da incerteza. Surgiu da convicção de que a aceitação da diferença de opiniões e de acções era a opção certa. Nesse momento, tornei-me tão “sabichão” quanto o meu interlocutor; tornei-me inflexível em relação à minha postura de aceitação de opiniões diferentes da minha. Tornei-me naquilo que procuro combater e que comecei por criticar no início deste texto.

Portanto, não basta provar a comida para ver se é preciso juntar sal. Há que educar o nosso palato para novos sabores e, para isso, há que os experimentar. Não se vai lá com teorias nem com manifestos. A aceitação e a tolerância praticam-se sabendo, antes de tudo, que estes princípios quando levados a um extremo se tornam no seu oposto.

Há um longo caminho pela frente para mim. Há um longo caminho pela frente para a humanidade

[1] Infelizmente não me recordo nem consegui encontrar a referência a este estudo, tanto nos meus registos como em pesquisas em motores de busca. Se alguma leitora ou algum leitor reconhecer o estudo pela descrição que aqui faço peço, por favor, que me indique

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João Sevilhano

João Sevilhano

É licenciado em Psicologia Aplicada, área de Psicologia Clínica. Exerceu funções em instituições de saúde na área da Psicologia Clínica. Trabalhou igualmente como técnico de recursos humanos passando por vários departamentos onde se destacam as atividades de criação e implementação de programas formativos, counseling de gestores e equipas e a gestão de R.H (SONAE Distribuição). Desenvolveu a sua atividade na Escola Europeia de Coaching (EEC), agora Way Beyond, onde foi sócio-gerente, director pedagógico, coach e facilitador. Na Way Beyond é... Ler Mais..

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