Opinião
A Inteligência artificial revolucionária – Parte I

Os seres humanos sempre utilizaram tecnologia, mesmo que rudimentar, para expandir os limites da imaginação. Em 1965, Gordon Moore propôs uma teoria afirmando que o número de transistores em circuitos integrados dobra a cada dois anos (e, intuitivamente, outros avanços tecnológicos seguiriam o mesmo padrão), o que tem se mostrado bastante preciso desde então.
Embora não nos devêssemos surpreender com a experiência de uma evolução tecnológica exponencial, dado que a vivenciamos há tanto tempo, os recentes avanços relacionados com a tecnologia têm-se desdobrado diante dos nossos olhos a uma velocidade tão rápida que se torna quase impossível não ficar impressionado, se não assustado. A velocidade do progresso tecnológico atingiu um ponto em que até mesmo o termo “inteligência artificial” parece ser limitado para certas aplicações. Hoje, muitos enxergam a IA generativa como o verdadeiro futuro da tecnologia, oferecendo capacidades muito além do que imaginávamos anteriormente.
A verdade é que a IA generativa refere-se apenas a uma das inúmeras formas de usar a IA. De maneira simples e figurativa, a IA generativa é a IA potencializada, capaz de criar conteúdos como áudio, vídeo, imagem, texto e o que conhecemos como “deepfake”, algo impossível de alcançar sem a parte “generativa” da IA.
Apesar do senso comum de que a IA generativa é a maior criação tecnológica dos últimos anos, suas origens remontam a mais de seis décadas. Os primeiros sinais do que poderia se assemelhar à IA generativa surgiram na década de 60 com a criação do chatbot “Eliza” por Joseph Weizenbaum, professor do MIT. Embora o chatbot pudesse simular conversas com sucesso, enfrentava um vocabulário limitado e não poderia chegar perto da capacidade dos chatbots amplamente utilizados hoje em dia.
No entanto, dada sua ampla utilidade, o grande salto na IA generativa ocorreu apenas há alguns anos com o lançamento do ChatGPT e do Dall-E, duas plataformas populares atualmente. Enquanto a IA generativa tem dividido opiniões ao redor do mundo, parece ter mudado a forma como realizamos nossas atividades diárias, especialmente as tarefas profissionais.
Um bicho de sete cabeças simplificado
Como a IA generativa é totalmente estruturada em princípios de inteligência artificial, entender como ela funciona requer pelo menos algum conhecimento técnico básico de IA. A IA consiste em algoritmos (ou software) capazes de identificar padrões específicos em dados coletados, usá-los para tomar decisões ou fazer previsões e resolver problemas cuja solução depende do processamento correto dos dados, em certo sentido imitando o processo decisório humano em algumas situações. Em outras palavras, a IA pode ser complexa, mas é essencialmente matemática. Apesar de sua utilidade em análise intensiva de dados, a IA sempre enfrentou uma limitação crucial: a capacidade de criar.
É aí que entra a IA generativa. Ela funciona como IA, mas é capaz de criar novas informações com base em dados previamente recolhidos. Se a inteligência artificial é matemática, então a IA generativa seria como a Rocket Science. Já estão surgindo os primeiros casos de uso da Gen AI, como softwares que podem guiar passo a passo a criação de campanhas de marketing ou programas que redigem e-mails corporativos a partir do zero.
A IA generativa envolve uma infraestrutura complexa e interconectada, o que explica o seu vasto mercado atual. Esta tecnologia oferece diversos pontos de entrada, criando inúmeras oportunidades de negócios devido às várias camadas que devem operar de forma integrada para que a Gen AI funcione. Hoje, essa infraestrutura é categorizada em quatro grupos distintos, cada um composto por mercados enormes com grande potencial de exploração. Alguns foram estabelecidos especificamente para IA, como a OpenAI e a Anthropic, enquanto outras empresas já existentes, como AWS e Nvidia, decidiram explorar a infraestrutura de IA generativa. Essa convergência de entidades reflete o cenário dinâmico e em constante evolução da IA generativa, promovendo colaboração e inovação em toda a indústria.
- Camada de Infraestrutura
Os modelos fundamentais exigem uma quantidade vasta de processamento para serem treinados e para operarem com enormes quantidades de dados. Provedores de serviços em nuvem e hardware — chips de GPU (Unidade de Processamento Gráfico, ao contrário da CPU, pode executar múltiplas tarefas em paralelo de forma muito mais eficiente ao dividir em componentes menores) — são fundamentais para este segmento.
- Camada de Infraestrutura de Dados
Nesta camada, a qualidade dos resultados de um modelo depende fortemente dos dados utilizados no treinamento. Portanto, soluções como Data Lake e dados limpos são cruciais nesta fase. Eles desempenham um papel fundamental em garantir a qualidade dos modelos treinados. Esta camada abrange a recolha, processamento, armazenamento, gerenciamento e organização de dados, todos aspetos vitais na preparação dos dados utilizados no treinamento.
- Camada de Fundamentos
Empresas nessa camada treinam modelos de IA generativa desde o início. Atualmente, o mercado é dividido em dois segmentos: o primeiro, “closed source”, engloba os maiores modelos como OpenAI, Anthropic e outros. Esses modelos são privados e geralmente requerem pagamento para acesso. Eles são pré-treinados com seu próprio código e dados, que não são compartilhados publicamente nem modificáveis. O segundo segmento, “open source”, é acessível ao público, permitindo que qualquer pessoa os use, modifique e treine com seus próprios dados. O código e a arquitetura subjacente do modelo são disponibilizados publicamente, promovendo flexibilidade e transparência. Essa abertura encoraja a colaboração entre desenvolvedores e pesquisadores, permitindo que contribuam com melhorias e inovações.
- Camada de Aplicação
A camada de aplicação é a representação prática e o uso de modelos generativos e dados existentes para realizar tarefas ou aplicações específicas. Inclui aplicativos de ponta a ponta ou APIs de terceiros que integram modelos de IA generativa em casos de uso cotidianos em diversos domínios, melhorando a produtividade, criatividade e garantindo fluxos de trabalho mais fluidos.
Onipresença
Nas últimas décadas, fomos cada vez mais envolvidos pela tecnologia digital, que muitas vezes tem substituído objetos físicos ou soluções para problemas que considerávamos tangíveis. Através das máquinas de cartão de crédito, não precisamos de esperar mais pelo atendente para receber o troco, e as crianças têm perdido gradualmente o interesse por brinquedos à medida que tablets e videogames oferecem uma experiência de jogo muito mais intensa. No entanto, à medida que a inovação se torna relevante para a sociedade, ela também atrai a atenção de reguladores e governos.
A inovação sempre surge antes da regulamentação ser atualizada, já que seria impossível adaptar a regulamentação ao progresso tecnológico que ainda não ocorreu. No entanto, a velocidade com que temos inovado recentemente tem sido tão intensa que os reguladores têm enfrentado dificuldades substanciais para acompanhar o mesmo ritmo e garantir que os limites adequados sejam estabelecidos para os mais recentes avanços tecnológicos. No passado, as autoridades não demoraram a regular cartões de crédito ou bancos digitais. Não há muito tempo, as redes sociais começaram a apresentar importantes obstáculos aos reguladores, que levaram algum tempo para entender quais os limites razoáveis a impor ao Facebook, YouTube e outras empresas similares.
Hoje em dia, no entanto, as autoridades mal começaram a lidar com transações das criptomoedas quando a inteligência artificial generativa de repente explodiu. Tal é a velocidade caótica com que temos evoluído tecnologicamente que, não há muito tempo, milhares de especialistas, incluindo Elon Musk, assinaram uma carta pedindo a pausa do desenvolvimento de IA por algum tempo, visando proporcionar tempo suficiente para entender como evitar que a evolução tecnológica saia do controle e se torne potencialmente prejudicial.
Diante desse cenário, a União Europeia parece liderar as regiões que mais rapidamente estão a regulamentar adequadamente as inovações digitais, seguida pelos Estados Unidos. Como estabelecer regras naturalmente impõe limites à inovação e, consequentemente, diminui a rapidez com que ela evolui, recentemente, os Estados Unidos deram um passo atrás nesse sentido, agindo com mais cautela ao impor limites que contradizem seu histórico incentivo constante à inovação.
No entanto, independentemente dos limites já impostos pela União Europeia, pelos EUA ou por qualquer outra região, um aspeto vale ser considerado: diferentemente de quase tudo o que a humanidade já experimentou, a tecnologia, especialmente a digital, está quase omnipresente, o que significa que o conjunto de regras adotado por uma região pode não ser suficiente para estabelecer eficientemente os limites para determinada tecnologia caso outras regiões não o adotem também. Como exemplo, enquanto a Suíça está atualmente bem à frente na definição de regras para transações de criptoativos, esse segmento ainda é, argumentável e pouco regulamentado globalmente, dado desfasamento de outras regiões nesse aspeto.
Nem tudo são flores
Apesar dos inúmeros benefícios e impactos positivos da IA generativa em várias áreas, ela ainda enfrenta desafios que requerem atenção e precisa continuar a melhorar até alcançar seu pleno potencial.
Juntamente com as preocupações regulatórias sobre a IA Generativa, os dilemas éticos são preocupações naturais, dada a capacidade dessa tecnologia de distorcer a realidade e gerar preocupações significativas com a privacidade. Como mencionado anteriormente, os deepfakes podem desempenhar um papel substancial na disseminação de informação falsa e possivelmente incriminar inocentes.
A economia criativa destaca-se como um dos setores mais positivamente e negativamente impactados. Enquanto a IA Generativa pode ajudar os criadores a produzirem conteúdo de forma mais eficiente, ela também pode prejudicar a indústria. Um exemplo notável foi uma música lançada por um indivíduo desconhecido com falsas vocais do The Weekend e Drake, que obteve centenas de milhares de reproduções antes de ser retirada da internet. Este incidente causou preocupação entre os artistas, criando um episódio que seria inconcebível antes da existência da IA generativa.
Curiosamente, apesar de parecer uma violação óbvia de direitos autorais, a arte gerada por IA não se qualifica atualmente para proteção de direitos autorais, já que o direito autoral é um direito de propriedade intelectual que protege obras originais criadas por humanos, e não por software sem um autor humano direto. É aqui que a ética se cruza com as regulamentações.
Outro desafio significativo para essa tecnologia consiste na privacidade de dados, especialmente para as empresas. A IA generativa é continuamente treinada com dados, e cada input de dados pode ser usado para gerar novos conteúdos no futuro se um determinado padrão for identificado, potencialmente causando vazamento de dados sensíveis. Devido a essa preocupação, várias empresas proibiram o uso do ChatGPT e outros tipos de IA generativa. A Samsung está entre as empresas que adotaram essa postura, motivada pelo vazamento de dados sensíveis após alguns funcionários utilizarem o ChatGPT. Isso levou as corporações a reconsiderarem a adoção da IA Generativa, dificultando a utilização dessas ferramentas em processos que poderiam se tornar mais eficientes com o uso dessa tecnologia. Para resolver esses problemas, soluções estão a ser desenvolvidas para permitir que as organizações usem os seus próprios modelos privados de IA generativa, treinados com dados específicos e focados na solução de problemas particulares.
Por fim, o acesso ao hardware e os seus custos associados representam um problema significativo para o mercado de IA generativa. O treinamento e a execução de modelos de IA generativa exigem um poder computacional substancial, com as GPUs desempenhando um papel crucial na aceleração da análise e processamento de dados. A procura elevada e o rápido crescimento do mercado fizeram com que a indústria de hardware ficasse para trás, resultando numa escassez de chips e desacelerando o desenvolvimento dos modelos de IA generativa.
Atualmente, a Nvidia é a maior fornecedora de hardware para IA detendo 60-70% do mercado global de GPUs. No 4Q23, a empresa reportou vendas de GPUs para data centers de US$ 18,4 bilhões, refletindo um notável crescimento anual de 409%. Apesar de não ser um setor tão novo, o rápido crescimento também criou uma escassez de profissionais qualificados, já que essa tecnologia requer conhecimentos avançados em computação de alto desempenho e deeptech.
A pergunta de um milhão de dólares aqui é como gerir a procura energética da IA. As GPUs exigem uma quantidade enorme de energia para treinar os modelos, e estima-se que a energia necessária para tarefas de IA esteja acelerando com uma taxa de crescimento anual entre 26% e 36%. Até 2028, a IA poderia estar usando mais energia do que todo o país da Islândia usou em 2021. Em um momento em que a sustentabilidade é uma das principais questões mundiais e a IA é uma das tecnologias mais revolucionárias já criadas, alinhar ambas é essencial para o futuro da humanidade.