Opinião

A capacidade de ação dos cidadãos contra a inépcia do poder

Randy M. Ataíde, investidor e consultor

Quando era miúdo tive a sorte de passar muito tempo com o meu avô Jacinto P. Ataíde, nascido na pequena Gafanha da Nazaré, perto de Aveiro, em 1903, que emigrou para a Califórnia ainda jovem.

Fiquei frequentemente admirado com a sua capacidade de construir, reparar e renovar praticamente qualquer artigo ou objeto, desde a construção de uma casa, à confeção de brinquedos tradicionais portugueses para os netos, ou à reparação de um motor de automóvel.
A sua oficina nunca foi grande nem particularmente bem abastecida, mas se alguém esperasse alguns instantes ele alcançaria algum frasco ou lata escondida e recuperaria o objeto procurado ou ferramenta peculiar para fazer a correção necessária. O seu engenho serviu-lhe bem toda a sua vida e foi evidente em medida significativa para todos os seus irmãos mais novos. Ele nunca foi rico, nem poderoso, nem particularmente influente, mas viveu uma boa vida longa com uma grande e extensa família.

Como cheguei agora à idade em que eu e todos os meus irmãos e primos somos os patriarcas e matriarcas dos nossos próprios ramos da família Ataíde, e nos últimos mais de 20 anos estive ativo em Portugal em vários setores, passei a reconhecer e, de muitas maneiras, a estimar a capacidade do meu avô e dos seus irmãos.

O melhor termo que posso usar para descrevê-lo é capacidade de ação. No campo do empreendedorismo, muitas vezes tomamos nota da sua capacidade de “encontrar uma maneira” de desenvolver soluções práticas com um mínimo de recursos, no entanto, como o Journal of Business Venturing observou em 2020, uma reflexão mais profunda sobre o tema era necessária para “a desenvoltura é tão central para o empreendedorismo que é, em muitos aspetos, tornou-se onipresente … (que) atrofiou a investigação académica sobre o quê, quem, por que, quando e como os atores são engenhosos”. Eu acrescentaria que pessoas poderosas em muitos outros setores também atrofiaram a apreciação da capacidade de ação.

Embora possa muito bem ser que a erudição e os líderes políticos tenham ignorado este tema, a história de Portugal não, pois está cheia (se quisermos procurar) de dezenas de exemplos da desenvoltura dos seus cidadãos comuns. Mas em demasiadas destas situações vê-se também a inépcia dos poderosos para ignorar, sufocar e até punir aqueles que articulam uma solução diferente para a situação que se enfrenta.

Embora esta não seja uma situação exclusiva dos portugueses, custa-me pensar em poucas outras nações que pagaram um preço tão elevado como Portugal por não terem apreciado, implementado e institucionalizado esta desenvoltura e capacidade de ação generalizada. E é provável que se chegue à dolorosa conclusão de que, com gerações de portugueses, se torna um fator primordial na determinação do ADN nacional.

Os exemplos da desenvoltura portuguesa podem ser extraídos de uma grande variedade de fontes, cenários e datas. O historiador Roger Crowley conta o Conto de 1510, durante a conquista de Goa, em que um condenado português chamado João Machado aproximou-se das forças de Afonso de Albuquerque com uma bandeira branca e uma mensagem urgente. Machado tinha sido deixado anos antes na costa Swahili e tinha entrado ao serviço do poderoso Adil Shah, e avisou que as forças do Xá em breve se juntariam a outras para destruir os portugueses.

Machado aconselhou que estas forças vindouras e as monções que se aproximavam causariam estragos nos portugueses mal tripulados. Se Albuquerque só libertasse algumas mulheres e crianças escravizadas, Machado dizia que esse simples gesto de baixo custo restauraria as boas relações entre todos. Este apelo ao bom senso foi recebido com a resposta arrogante de que “O que os portugueses ganham nunca desistem!” com um previsível resultado desastroso.

Tais histórias são também difundidas nas histórias dos emigrantes açorianos que deixam a sua terra natal e depois regressam à sua terra natal com um “nest egg”. O historiador Luís Mendonça regista na sua obra “História dos Açores” esta tendência de poupança, perseverança e desenvoltura que leva muitas vezes ao cenário de que “passados 8 a 10 anos, se tudo corresse bem, regressaria com as suas economias, construiria/compraria casas, adquiriria terras, tornar-se-ia proprietário de terras e beneficiaria familiares e até a sua própria aldeia”. Mendonça conclui que tal comportamento é tão comum que é “um dos estímulos centrais à emigração”.

A capacidade de ação como elemento fundamental do português comum é tão difundida que no livro único de Warrin e Gomes “Portugueses no Velho Oeste” escreve sobre a colonização do Oeste dos EUA e que “destas páginas emergem constantemente homens de iniciativa, destacando-se em atividades alheias à experiência portuguesa, como o comércio de peles, a mineração, o imobiliário urbano, ferrovia, e criação de gado bovino e ovino em grande escala, em oposição aos meios de subsistência geralmente percebidos na Califórnia de criação de aves, pequenas pousadas, ferrovia, caça à baleia ou pecuária leiteira.

A capacidade de ação é uma palavra-chave para o presente trabalho. Mesmo no longínquo Havai, os 25.000 portugueses que lá chegaram entre 1878 e 1913 são conhecidos até hoje como sendo o principal grupo de emigrantes capazes de ocupar cargos de supervisão e liderança, pois foram capazes de trabalhar entre culturas, línguas e tradições melhor do que qualquer outro dos muitos que lá chegaram.

Infelizmente, esta virtude da capacidade de ação e da resposta das lideranças políticas, religiosas e académicas portuguesas tem repetido demasiadas vezes os erros de Albuquerque de há tanto tempo. Um exemplo óbvio e tipicamente esquecido é a recusa da coroa portuguesa em permitir reformas do sistema educacional nacional no Brasil, sendo que só na década de 1920 as universidades brasileiras começaram a desenvolver-se no Brasil, enquanto em muitos países espanhóis as universidades e a ampla distribuição de livros datam do século 16.

E embora Portugal deva ser bem elogiado por navegar nos desafios orçamentais e globais dos últimos anos com um aumento do PIB e da geração de riqueza para um grupo crescente de portugueses, o Fundo Monetário Internacional (FMI) nota no seu Relatório sobre Portugal de julho de 2024 que, entre outras ações, “são também necessárias reformas orçamentais para abrir espaço para investimento adicional e continuar a reduzir a dívida” e que “uma maior eficiência do setor público deve apoiar esses esforços”. Da mesma forma, o Índice de Competitividade Global, bem como os rankings do IMD World Competitive Center, destacam a natureza competitiva reforçada de Portugal e a adequação para negócios e investimentos globais, mas a forma como o governo lidou com a liquidação do Programa Golden Visa foi mais uma aterragem forçada do que uma aterragem suave, causando uma redução generalizada do investimento.

Enquanto os portugueses orgulhosamente (e com razão) relatam o incrível período dos Descobridores, permitam-me propor que no século 21 os esforços dos cidadãos portugueses comuns dispersos por séculos é um ponto de referência muito mais relevante e, em última análise, importante. Portugal e os seus cidadãos, especialmente os mais afastados dos centros de poder e influência em Lisboa e no Porto, precisam de maior defesa e celebração da virtude da desenvoltura da população local, mais do que mais uma oportunidade fotográfica para um pequeno evento municipal que se transforma numa grande celebração resplandecente de pompa política e auto-congratulação.

A realidade é que, durante séculos, os cidadãos de Portugal regressaram à sua oficina, cozinha, quinta ou garagem e encontraram a solução para o problema em questão, tal como o meu avô o fez há muito tempo. A desenvoltura e capacidade de ação dos cidadãos precisa ser colocada em primeiro plano e no centro da conversa pública mais uma vez.

 Versão em inglês

Citizen Resourcefulness against Powerful Ineptitude

When I was a boy I had the good fortune to spend a significant amount of time with my Grandfather Jacinto P. Ataíde, born in tiny Gafanha da Nazaré near Aveiro in 1903, who emigrated to California as a young man. I was frequently in awe of his capacity to build, repair, and renovate nearly any item or object, from building a home, to making traditional Portuguese toys for his grandchildren, or repair a car engine. His workshop was never large nor particularly well-stocked, but if one waited a few moments he would reach into some hidden jar or can and retrieve the sought after object or peculiar tool to make the necessary fix. His ingenuity served him well his entire life, and it was apparent in significant measure to all of his younger siblings. He was never rich, nor powerful, nor particularly influential but lived a good long life with a large extended family.

As I have now arrived at the age where myself and all of my own siblings and cousins are the patriarchs and matriarchs of our own branches of the Ataíde family, and for the past 20+ years been active in Portugal in a number of sectors, I have come to recognize and in many ways esteem my grandfather’s capacity and that of his siblings. The best term I can use to describe it is resourcefulness. In the field of entrepreneurship, we often take note of their capacity to “find a way” to develop practical solutions with a minimum of resources; however as the Journal of Business Venturing took note of in 2020 deeper reflection of the topic was required for “resourcefulness is so central to entrepreneurship that is has in many ways become ubiquitous…(that) has stunted scholarly inquiry into the what, who, why, when, and how actors are resourceful.” I would add that powerful people in many other sectors have also equally stunted the appreciation of resourcefulness.

While it may well be that scholarship and political leaders have ignored this topic, the history of Portugal has not, for it is full (if one cares to seek) of scores of examples of the resourcefulness of its ordinary citizens. But in far too many of these situations one also sees the ineptitude of the powerful to ignore, stifle, and even punish those who articulate a different solution to the situation being faced. While this is not a situation that is unique to the Portuguese, I am hard pressed to think of few other nations that have paid a price as high as Portugal has for failing to appreciate, implement, and institutionalize this widespread resourcefulness. And the painful conclusion can likely be drawn that with generations of Portuguese, it becomes a main factor in determining the national DNA.

The examples of Portuguese resourcefulness can be drawn from a wide variety of sources, settings and dates. Historian Roger Crowley recounts the tale from 1510, during the conquest of Goa, a Portuguese convict named João Machado approached the forces of Afonso de Albuquerque with a white flag and an urgent message. Machado had been dropped off years before on the Swahili coast and had come into the service of the powerful Adil Shah, and warned that the Shah’s forces would soon be joined by others to destroy the Portuguese. Machado counseled that these coming forces and the approaching monsoons would wreak havoc on the poorly manned Portuguese. If Albuquerque would only free some enslaved women and children, Machado said that this low-cost simple gesture would restore good relations between all. This appeal to common sense was met with the arrogant answer that “What the Portuguese win they never give up!” with a predictable disastrous result.

Such stories are also widespread in the stories of the Azorean immigrants who leave their homeland, and later return to their homeland with a “nest egg.” Historian Luís Mendonça records in his seminal work History of the Azores this tendency of thrift, perseverance, and resourcefulness often leads to the scenario that “after 8 to 10 years, if all went well, he would return with his economies, build/buy houses, acquire land, become a landowner, and benefit family members and even his own village.” Mendonça concludes that such behavior is so common that it is “one of the central stimuli to emigration.”

Resourcefulness as a fundamental element of the common Portuguese is so widespread that in Warrin and Gomes’ unique book “Portuguese in the Old West” writes of the settling of the Western U.S. and that “Men of initiative constantly emerge from these pages, excelling in activities alien to the Portuguese experience, such as fur trading, mining, urban real estate, rail-roading, and large scale cattle and sheep raising, as opposed to the generally perceived livelihoods in California of poultry raising, small hostelries, ferrying, shore whaling, or dairy farming. Resourcefulness is a key word as far as the present work is concerned.” Even in far-away Hawaii, the 25,000 Portuguese who arrived there between 1878 and 1913, are known to this day as being the key immigrant group that were capable of holding supervisory and leadership positions, for they were able to work across cultures, languages and traditions better than any others of the many who came there.

Unfortunately, this virtue of resourcefulness and the response of Portuguese political, religious, and academic leadership has all too often replicated the blunders of Albuquerque from so long ago. One obvious and typically overlooked example is the refusal of the Portuguese crown to ever allow reforms of the national educational system in Brazil, with this stifling of reform being that it was not until the 1920’s that Brazilian Universities began to develop in Brazil while in many Spanish countries universities and the widespread distribution of books dates to the 16th century. And while Portugal should be well commended for navigating the fiscal and global challenges of the past few years with enhanced GDP and wealth generation for a growing group of Portuguese, the International Monetary Fund (IMF) notes in their July 2024 Report on Portugal that, among other actions, “Fiscal reforms are also needed to make room for additional investment and continue reducing debt” and that “Greater public sector efficiency should support these efforts.” Similarly, the Global Competitiveness Index as well as the IMD World Competitive Center’s rankings both highlight Portugal’s enhanced competitive nature and suitability for global business and investment, yet the government’s handling of the winding down of the Golden Visa Program was more of a crash landing than a soft landing causing widespread investment reduction.

While the Portuguese proudly (and rightfully) recount the amazing period of the Discoverers, may I propose that in the 21st century the endeavors of the common Portuguese citizens dispersed for centuries is a far more relevant, and ultimately important point of reference. Portugal and its citizens, especially those far removed from the centers of power and influence in Lisbon and Porto, need greater advocacy and celebration of the virtue of the resourcefulness of the local populace more so than one more photo opportunity for a minor municipal event that is turned into a major celebration resplendent with political pageantry and self-congratulation. The reality is that for centuries, the citizens of Portugal has returned to their workshop, kitchen, farm or garage and found the solution for the problem at hand, just as my Grandfather did so long ago. Resourcefulness of the citizenry needs to be placed front and center in the public conversation once again.

Comentários
Randy Ataíde

Randy Ataíde

Randy M. Ataíde é um experiente CEO, empreendedor e educador com mais de 40 anos de experiência prática de negócio. Atualmente é investidor e consultor numa grande variedade de empresas norte-americanas e portuguesas, em imobiliário residencial e comercial, hospitality e fabrico. Anteriormente, foi professor de empreendedorismo e vice-reitor de Negócios e Economia na Point Loma Nazarene University, em San Diego, Califórnia, período durante o qual publicou mais de uma dezena de artigos de investigação e capítulos de livros, e foi... Ler Mais..

Artigos Relacionados