Opinião

Ver com clareza aleija, por isso escolhe-se ver turvo

João Sevilhano, Sócio, Estratégia & Inovação na Way Beyond

No final dos anos 80 do século passado, duas investigadoras[1] colocaram a seguinte hipótese: “as pessoas deprimidas tendem a inferir de forma mais realista do que as pessoas não deprimidas.”

Este fenómeno a que chamaram “realismo depressivo”, por outras palavras, significa que quem se apercebe, com mais clareza, da forma como o mundo realmente funciona terá menos benesses do que se esperaria. Em suma, segundo esta ideia, quanto mais realista for a perspectiva que temos sobre o mundo, quanto mais conscientes estivermos sobre o seu funcionamento, maior será o risco de deprimirmos.

Tal hipótese e respectiva investigação foram e continuam a ser alvo de críticas, e muitas são sólidas e bem argumentadas. Apesar disso, a ideia subjacente poderá ajudar-nos a entender alguns fenómenos que observo, tanto em mim como em cada vez mais pessoas.

Pelo estado hodierno do mundo não parece ser difícil dar crédito à hipótese a que fizemos alusão. Ver com clareza as atrocidades que andamos a fazer uns aos outros, em conflitos cada vez mais “próximos” (não necessariamente no sentido geográfico, mas também); saber que o planeta está a piorar a cada dia que passa, e que pouco ou nada estamos a fazer para reverter a situação; sentir a carteira a emagrecer de cada vez que fazemos umas compras essenciais; olhar à volta e observar que o interesse das pessoas que ocupam lugares e posições com poder para ajudar a reverter tais situações, escasseia ou está em parte incerta. A lista facilmente continuará, sem ser necessário recurso esforçado à imaginação. Bastará uma observação preguiçosa.

Talvez seja por isto que tenho visto crescer o número de pessoas que conheço que dizem algo parecido com: “deixei de ver as notícias. É só desgraças!” Porém, quando esta hipótese foi investigada, o mundo não estava como está. Não adianta comparar porque, sempre que se comparam percepções entre épocas diferentes, há uma tendência irritante para se dizer algo como “no meu tempo é que era bom” ou, o extremo oposto: “esta nova geração está perdida”. Em qualquer dos casos, há uma displicência pelo tempo presente que tem laivos de queixume, vitimização, impotência e conformismo ou submissão, também elas características irritantes.

Este fenómeno até pode ser uma tendência intemporal, ligada à nossa condição humana, alvo de eternas reflexões e discussões filosóficas. Por exemplo, ao saber-se com grande clareza e ao ter-se presente a ideia de que vamos morrer, ou que “as nossas pessoas” vão desaparecer, como não ficar deprimido? Da mesma forma, se tivermos presente de forma constante os múltiplos exemplos do mal que fazemos uns aos outros – racismo, xenofobia, misoginia, genocídio, desigualdade – os cenários que surgem penderão para algo próximo de um apocalipse ontológico.

Por estas razões, ver, viver e sentir a realidade de forma mais opaca, mais turva, mais superficial, parece poder ajudar a nossa saúde mental. Será uma amnésia funcional, uma inconsciência com força vital, que nos permite viver o dia-a-dia de forma tolerável, sem uma tormenta constante. Quem sabe, até com uma sensação de leveza ou algo que se assemelhe a felicidade? Ignorance is bliss, dizem os anglófonos, e parece que este tipo de ignorância intencional está a aumentar.

Por mais desconhecidas que sejam ou erradas que estejam as conclusões da referida investigação, parece-me que cada vez mais se escolhe menos conhecimento e mais entretenimento; cada vez menos pensamento e mais distracção. Pior será se deixarmos sequer de os distinguir. Suspeito que já teremos dado passos largos a caminho dessa confusão.

Vivemos em tempos em que há um sentimento presente de uma falta constante, que nos leva numa busca incessante, por sentido, significado e propósito; que nos leva a fazer mais, a ter mais, a chegar primeiro, a conseguir uma escala global sobre tudo o que nos propomos fazer, com indícios messiânicos de salvação dos problemas do mundo e da humanidade. Há uma pressão, que já não é invisível, para se ser ambicioso, para fazer mais, mais rápido; acumular muito para, por fim, se poder descansar. Contudo, é muito típico verificar-se que os que mais conseguem, os que mais têm, são quem mais rápido anda, sem conseguir parar. Se nos habituamos à correria, se é esse o registo que se torna normal e valorizado, para quê parar?

E, claro, tudo isto deve ser feito com um sorriso na cara, pois com essa aparência poderemos inspirar outros a fazer igual. Eis a receita base da auto-ajuda, que na verdade nunca é “auto”: é sempre alguém que descobriu uma fórmula mágica, tendo passado por uma qualquer adversidade, que outros deverão adoptar para se conseguirem transcender, “desenhando a melhor versão de si próprios”. A auto-ajuda é sempre um convite à submissão do pensamento próprio, do pensamento crítico, ao pensamento e à experiência de outro. Não será à toa que uma das “profissões” mais desejadas actualmente é a de “influenciador/a”. Só que o pensamento crítico é o exercício de pôr em causa o pensamento próprio. Só depois disso se deve sequer pensar em orientar a atenção para um pensamento de outrem. Claro que isto deve ser feito em comunhão, afastando, assim, a ideia de “auto”, e assumindo que outros serão essenciais para nos irmos construindo.

Embora sejamos facilmente encantados por palavras enérgicas e sorrisos contagiantes, as nossas “almas” não me parecem estar a gostar desta viagem. Enfim, continuamos a valorizar e a preferir os optimistas em vez dos pessimistas, os felizes em favor dos tristes. Se a ideia com que começámos faz sentido, preterimos os realistas e enaltecemos os idealistas-empreendedores. Os heróis e heroínas de hoje não ganham tal estatuto pela qualidade das suas ideias, que deveriam resultar da profundidade reflexiva e da coerência que seria visível na forma como viveriam a sua vida. São-no pelas tecnologias que inventam, pelos produtos que criam e vendem, pelo dinheiro que geram e pelo barulho que conseguem fazer.

Os heróis de que precisamos demoram-se. Demoram-se porque aguentam mais e melhor o tempo que se exige para encontrar uma boa resposta – que não é o mesmo que a resposta correcta. Demoram-se porque suportam não estar sempre “felizes”, nem cedem à pressão para assim estar perante os outros. Demoram-se para encontrar soluções que não tenham em conta apenas os seus interesses. Demoram-se porque precisam de aclarar a vista turva provocada pelo dia-a-dia exigente. Demoram-se porque não estão com pressa de usar a criatividade apenas como forma de se conseguir “ter” mais, mas como um fim em si. Demoram-se porque querem ser os primeiros a parar, a considerar, a contemplar, a reflectir e a conseguir não dar a primeira resposta que surge; querem ser os primeiros a esperar pela segunda ou pela terceira versão da resposta que parece suficientemente boa; serem os primeiros a ficar para trás, de propósito, sem o sentimento de perda nem a hipocrisia de poder dizer “eu bem te disse que andar tão rápido te faria tropeçar e cair”.

E, como nota final, nada disto tem de ser feito quando se está deprimido ou triste. Nada disto tem de ter um tom fatalista, nem agressivo, nem narcísico, nem sensacionalista. Tudo isto só pode ser feito se conseguirmos, individual e colectivamente, encontrar novas formas e novos objectos de prazer. Prazer pelo processo e não apenas com o resultado. Precisamos de um novo hedonismo.

[1] Lauren Alloy e Lyn Yvonne Abramson

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João Sevilhano

João Sevilhano

É licenciado em Psicologia Aplicada, área de Psicologia Clínica. Exerceu funções em instituições de saúde na área da Psicologia Clínica. Trabalhou igualmente como técnico de recursos humanos passando por vários departamentos onde se destacam as atividades de criação e implementação de programas formativos, counseling de gestores e equipas e a gestão de R.H (SONAE Distribuição). Desenvolveu a sua atividade na Escola Europeia de Coaching (EEC), agora Way Beyond, onde foi sócio-gerente, director pedagógico, coach e facilitador. Na Way Beyond é... Ler Mais..

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