Opinião
Uma tragédia, para quem a vida não é uma tragédia
Tendemos a evoluir quando somos postos à prova. Em momentos como o que atravessamos, em que precisamos de promover a autoconsciência individual e social. Porque a perda de um familiar, de um amigo ou de um colega de trabalho poderá, infelizmente, ter de ser chorada, mas a vida continuará.
A pandemia provocada pelo novo coronavírus alastra-se a cada dia por todo o mundo. À data em que escrevo este texto mais de três milhões de pessoas já foram infetadas e mais de 200 mil faleceram. Uma lamentável e global tragédia social.
No mesmo período de tempo, todavia, terão morrido, em países subdesenvolvidos, mais de dois milhões de pessoas, de fome ou por falta de acesso a cuidados de saúde. Estima-se que mais de 2.5 milhões de crianças perderão a sua vida ao longo deste ano, não por falta de quarentena, de um ventilador ou de uma cama num hospital, mas de fome…
De vírus ou pandemias pouco ou nada sei e evito opinar sobre o que não percebo ou não creio conseguir vir a perceber de forma satisfatória.
Este não é, por isso, (mais) um texto sobre o vírus que nos ameaça.
Esta pandemia acabará, mais cedo ou mais tarde, como outras, por passar. A perda de um familiar, de um amigo ou de um colega de trabalho poderá, lamentavelmente, ter de ser chorada, mas a vida continuará.
É em momentos como o que atravessamos, em que estamos mais vulneráveis e existe uma maior sensibilidade social, que precisamos de promover a autoconsciência individual e social, nem sempre com espaço nas nossas preenchidas agendas pessoais ou profissionais.
Este é, por isso, também um momento para refletirmos sobre outros problemas, locais ou globais, sociais ou económicos, não menos trágicos.
Problemas que não têm a atenção, o mediatismo ou a profundidade de debate que deveriam ter. Por hipocrisia, por egoísmo, por inércia, por ignorância, ou, simplesmente, porque não os conseguimos ver ou sentir. Como se estivessem neutralizados na nossa consciência social ou impregnados no nosso ADN civilizacional.
Hoje, o novo coronavírus ocupa, justificadamente, o espaço mediático. Daqui por algum tempo, o mediatismo transitará para a forte crise económica e social que aí vem. E quando a poeira desta assentar, temo que assuntos de interesse ou utilidade duvidosa voltem, novamente, a ocupar o espaço mediático e a agenda política e económica.
Mas como, se mais de 800 milhões de pessoas continuarão a passar fome diariamente, e milhares morrerão, enquanto o número de obesos não para de aumentar nos países mais ricos?
Como, se 1% da população mundial continuará a ter mais do dobro da riqueza do que quase 7 mil milhões de pessoas, mantendo-se uma inaceitável e insustentável desigualdade social?
Como, se prostituição, pornografia, armamento, álcool, jogo e tráfico de pessoas, continuarão entre as indústrias ou atividades económicas que mais dinheiro movimentam no mundo?
Como, se continuará a achar-se normal que indivíduos com um talento natural para dar uns pontapés numa bola ou dar uns murros num ringue aufiram milhões de euros por mês, quando metade das pessoas no mundo vive com menos de cinco dólares por dia?
Como, se muitos dos filmes, séries televisivas, ou videojogos mais apreciados pelos jovens, continuarão a ter uma matriz marcadamente violenta, de crime, guerra e morte, desprezando-se o sofrimento real experienciado por milhões de pessoas nessas mesmas circunstâncias?
Alguns destes problemas perdurarão tão só porque serão necessárias várias gerações para os mitigar ou ultrapassar. Outros, porque estão de tal forma enraizados na nossa matriz social, económica ou cultural que continuarão a ser considerados normais. Outros, finalmente, porque não haverá a clarividência, o bom senso, a coragem ou o necessário e complexo consenso político ou social para lhes pôr fim.
Vivemos, não de agora, num contexto de algum egoísmo social, em que os graves problemas civilizacionais não parecem colher suficiente atenção, exceto quando se aproximam e nos ameaçam ou aos que nos são mais queridos.
Assistimos a uma hipocrisia mediática, em que, com demasiada frequência, nos entretemos a debater o mais fácil, superficial, inútil ou acessório, ao invés do mais difícil, profundo, útil ou essencial.
Vislumbramos uma agenda política ou económica mais errática do que o aceitável, em que os interesses particulares parecem sobrepor-se, invariavelmente, ao interesse geral.
E presenciamos um ambiente de ganância económica, evidentemente insustentável, porque os recursos são escassos, as economias não crescerão eternamente, a impressão de dinheiro atingirá o seu limite, os mercados de capitais não passarão a gerar riqueza e as dívidas públicas tornar-se-ão impagáveis.
Tudo isto, naturalmente, sem prejuízo das inúmeras coisas boas e positivas que se fazem nos vários quadrantes.
Precisamos de uma vacina que ajude a combater todos estes desequilíbrios. Uma vacina com séculos de atraso, mas vale tarde… Uma vacina desenvolvida no laboratório da nossa consciência individual e social, que seja um agente da transformação de valores no mundo.
Romantismo e retórica à parte, um mundo onde se celebre mais a simplicidade do bem-estar, e menos a ostentação ou o brinde ao efémero. Onde nos indignemos, de verdade, com o sofrimento dos outros, aceitando, por outro lado, o desconforto daquilo que nos incomoda. Onde se compita menos e se colabore mais e melhor. Onde se dê mais espaço e oportunidades aos sábios, sensatos e solidários, em detrimento dos espertos, astutos ou gananciosos. Onde a ganância do poder seja substituída pela simples ambição da felicidade.
Esta crise, pela sua universalidade, excecionalidade e extraordinário impacto no nosso quotidiano, colocou à vista de todos, num curtíssimo espaço de tempo, a fragilidade da vida humana e da sociedade e economia em geral.
Essa é, até ver, a grande lição desta crise – a de demonstrar, de uma forma assustadoramente brusca e clarividente, o quão frágeis somos e o que nos rodeia.
Que este ano fique na história, não pelos piores motivos, mas pela reconquista da esperança num mundo melhor.