Entrevista/ “Só quem não toma decisões não erra”
A ParaRede marcou uma época. Na viragem para o novo milénio, a empresa esteve no centro de profundas alterações tecnológicas que marcaram Portugal. João Pereira, que participou na IPO da ParaRede, em 1999, acaba de lançar um livro, onde desvenda os bastidores da empresa, que foi a primeira tecnológica portuguesa a ser cotada numa bolsa de valores.
Ao longo da sua carreira como empresário, com mais de 30 anos, João Pereira tem exercido funções de gestão e administração de empresas. Foi coresponsável pela realização de dois MBO (Management Buy Out) nas empresas ParaRede, em 1991, e na Saphety, em 2019.
Em 1999 participou na IPO (Initial Public Offer) da ParaRede, a primeira empresa tecnológica portuguesa a ser cotada numa bolsa de valores e, em 2021, na venda da Saphety ao grupo norte-americano SOVOS.
Atualmente exerce funções de CCO na Saphety e acaba de lançar um livro onde conta a história e as peripécias da ParaRede, “que teve um desfecho menos positivo, durante os anos de 2000 e 2001”. “A vida da ParaRede foi muito intensa, marcada por inúmeros episódios desde a sua formação até à minha saída do projeto (2001/2002), e por esta razão não é fácil particularizar”, explicou em entrevista ao Link To Leaders.
O que o levou a contar a história da ParaRede em livro?
A ParaRede marcou claramente uma época (década de 1990 e princípio deste novo milénio) no setor tecnológico em Portugal. Foi a primeira empresa portuguesa de tecnologia a ser cotada numa bolsa de valores. Se observarmos o mercado livreiro em Portugal, e um pouco pela Europa, podemos encontrar vários livros que teorizam os conceitos ligados à gestão de empresas, mas existem poucas obras escritas por empresários e gestores que descrevam os bastidores, as vivências e as histórias que estiveram por detrás da tomada de decisões.
Este livro abre ao leitor interessado, aos jovens universitários e aos gestores essas vivências, esperando que sirva de motivação para novas iniciativas empresariais.
Que mensagens quer passar?
Tudo é possível quando se acredita numa visão de negócio diferenciadora. A transformação dessa visão em ações que levem ao sucesso está intimamente ligada à liderança, à capacidade de formar equipas motivadas, de incentivar permanentemente a criatividade e a inovação, à delegação com responsabilidade, à ambição de pensar “grande”.
“No ano 2000 a empresa teve receitas superiores a 50 milhões de euros, contava com cerca de 500 pessoas e negócios realizados em vários países europeus, nos Estados Unidos, na América Latina e no continente africano”.
Como se consegue transformar uma pequena empresa de tecnologia num empreendimento à escala global?
A ParaRede iniciou a sua atividade em 1991, com uma equipa de dez pessoas e um capital social de 200 contos (cerca de mil euros). No ano 2000 a empresa teve receitas superiores a 50 milhões de euros, contava com cerca de 500 pessoas e negócios realizados em vários países europeus, nos Estados Unidos, na América Latina e no continente africano. Foi possível alcançar este feito pela capacidade de implementar, pela existência de uma cultura de exigência e simultaneamente informal entre todos os seus colaboradores, e com muito, muito trabalho.
Quais os episódios que mais o marcaram na ParaRede?
A vida da ParaRede foi muito intensa, marcada por inúmeros episódios desde a sua formação até à minha saída do projeto (2001/2002) e por esta razão não é fácil particularizar. No entanto, talvez possa indicar alguns, nomeadamente a formação da empresa foi um momento marcante. Surgiu de um MBO do departamento de redes locais de computadores da Centrel Comercial e caracterizou-se por muitas peripécias e dificuldades. Por vezes, pensámos que o projeto poderia não avançar.
A entrada na Bolsa de Valores de Lisboa, em julho de 1999, foi também uma experiência única. Não só o momento em si e a participação no road show, com reuniões com alguns dos maiores fundos de investimento à escala global; a transformação de uma empresa com processos um pouco informais, totalmente voltada para os clientes, numa empresa que iria ser cotada, levou a uma reorganização profunda e à incorporação de competências que não existiam. Tudo isto em pouco mais de um ano. Foi um grande desafio!
A montanha russa de emoções vivida no ano 2000, a loucura bolsita que veio a originar a chamada “bolha tecnológica”, foram momentos marcantes a título pessoal e na vida da empresa.
Quais os desafios que enfrentou enquanto esteve à frente da empresa?
Numa empresa de tecnologia, em forte crescimento, os desafios são permanentes. Posso citar alguns. A nível de recursos humanos, o maior ativo de uma empresa tecnológica são os seus colaboradores. Conseguir atrair os melhores recursos, mantê-los motivados, construir uma cultura de ambição e de liderança, é sempre um grande desafio
No que à tecnologia e inovação diz respeito, desenvolver e manter a inovação de produtos tecnológicos à escala mundial, para mais numa empresa portuguesa e naquela época, foram desafios que implicaram um conhecimento profundo da interligação tecnologia/negócio das empresas e uma constante atualização e renovação de competências.
Em termos de resiliência, numa empresa, nem todas as decisões tomadas são acertadas, existem contextos imprevistos e uma concorrência feroz. A capacidade de aprender rapidamente com os erros, de criar motivação para superar os imprevistos, superar essas dificuldades e torná-las em vantagens competitivas, são fatores essenciais para o sucesso.
“Iniciámos os contactos com alguns fundos portugueses sem qualquer resultado positivo. Naquela época (1997) praticamente não existia em Portugal a cultura de capital de risco e nenhum deles percebia de tecnologia”.
A entrada de uma empresa em bolsa é umas das experiências profissionais mais marcantes. Mas como se chega lá? O que foi determinante para a ParaRede dar o salto?
A ParaRede apresentou uma linha de crescimento de negócio ao longo dos anos muito acentuada. Até ao momento (entre 1991 e 1996), o financiamento da operação tinha sido efetuado através do reinvestimento dos resultados líquidos da empresa e de capitais alheios, normalmente empréstimos bancários.
As decisões estratégicas tomadas em 1996 de crescer acentuadamente nos mercados internacionais, com uma aposta forte no desenvolvimento de produtos próprios ligados ao comércio eletrónico entre empresas e posteriormente em soluções ligadas à internet para os nossos clientes, como o homebanking, lojas virtuais, emarketplaces, implicou repensar na forma como a empresa deveria ser financiada. A entrada na Bolsa de Valores pareceu-nos a opção mais adequada, pois permitia utilizar o mercado de capitais como fonte de financiamento quando necessário, preservando a posição e independência da equipa de gestão.
Iniciámos os contactos com alguns fundos portugueses sem qualquer resultado positivo. Naquela época (1997) praticamente não existia em Portugal a cultura de capital de risco e nenhum deles percebia de tecnologia.
Os negócios fazem-se com as pessoas, e foi necessário aparecer uma pessoa, o Miguel Azevedo, que tinha entrado recentemente no CBI (Central – Banco de Investimentos), vindo da Goldman Sachs, em Londres, para acreditar indubitavelmente no projeto e iniciar o processo – em primeiro lugar de entrada no capital da ParaRede e posteriormente de entrada em bolsa, a quem se veio juntar o BPI.
A reorganização do grupo ParaRede foi também fundamental, para estarmos preparados para as fases antes da IPO e após entrada no mercado de capitais. A Roland Berger teve um papel muito importante nessa restruturação. Tivemos também a necessidade de juntar ao grupo competências séniores nas áreas financeira e de relação com analistas de mercado.
Como devem os gestores e fundadores de uma empresa se preparar para a entrada de novos acionistas numa empresa?
Se a ambição é conseguir um crescimento estável e ligeiro ao longo dos anos, o financiamento através de capitais próprios poderá ser possível. Se uma empresa pretende ser disruptiva e fortemente inovadora no mercado, necessita de entradas de capital ao longo da sua vida. No último caso os fundadores têm de procurar canais de financiamento que implicam a entrada de novos acionistas.
Existem várias formas de o fazer. Vou dar dois exemplos: através da entrada de empresas de capital de risco, que, em conjunto com os fundadores, planeiam diversas rondas de financiamento de acordo com as necessidades de crescimento da empresa no futuro. Numa fase avançada, os acionistas poderão optar pela entrada em bolsa ou pela venda da empresa a um player da indústria com maior dimensão; e através do mercado de capitais. Neste caso a empresa poderá selecionar um sindicato bancário responsável pela colocação das ações em bolsa, podendo alguns dos bancos selecionados entrar ou não previamente no seu capital. No caso da ParaRede entraram o CBI e o BPI, numa primeira fase e depois o BES.
Independentemente do formato, a entrada de novos acionistas traz uma nova forma de relacionamento e uma partilha com “alguém” que vem de fora. Os fundadores têm de estar preparados para essa partilha, já que o bom relacionamento com os novos agentes financeiros deverá ser garantido. Por esta razão é muito importante os fundadores selecionarem convenientemente com quem querem partilhar o capital.
Outro ponto importante é gerir possíveis tentativas de influência mais ou menos “agressiva” na forma de gerir a empresa. A entrada dos novos acionistas pode e deve implicar uma nova organização da empresa, com preocupações de maior formalidade e na construção de processos internos mais sólidos, o que são aspetos positivos. No entanto, por vezes, poderá existir a tendência para os novos acionistas imiscuírem-se na gestão executiva, o que pode levar a alguns conflitos.
O que correu mal com a ParaRede?
Essa é uma pergunta que aparece de vez em quando, mas cuja resposta encontra-se guardada nos bastidores da empresa, e, provavelmente cada protagonista terá a sua opinião própria. Tento analisar neste livro todos os elementos que poderão ter contribuído para um desfecho menos positivo, durante os anos de 2000 e 2001. O contexto tem alguma complexidade, mas vou tentar resumir.
No último trimestre de 1999 e princípios de 2000, as empresas ligadas a negócios na Internet iniciaram fortes valorizações nos mercados de capitais. Esta dinâmica de subida, por vezes absolutamente inacreditável, foi alimentada por empresas de consultoria e analistas de mercado que referiam os novos negócios relacionados com a internet, baseados na exploração de portais, designados por emarketplaces (mercados eletrónicos), como o novo eldorado. O problema adveio do facto do mercado não se encontrar preparado para absorver esse novo modelo de negócio: a penetração da internet era ainda muito reduzida, os sistemas produtivos das empresas não estavam integrados com os mercados eletrónicos, a especulação e os investimentos elevadíssimos realizados não tinham adesão a um retorno expetável no curto e médio prazos.
Nesse contexto, a ParaRede, em 2000, iniciou alguns projetos na área dos mercados eletrónicos B2B (business to business – entre empresas) e B2C (business to consumer – diretamente ao cliente final), como fornecedor de tecnologia e também como entidade responsável pela sua exploração.
Em abril de 2001 os corpos sociais da ParaRede para o triénio seguinte iriam ser eleitos. Em finais do ano 2000, os fundadores tomaram a decisão de se retirarem da gestão executiva da empresa. Com base nessa decisão, foi selecionado um novo CEO, com a aprovação de todos os acionistas.
Em finais do ano 2000, os mercados de capitais sofreram uma forte queda, colocando-se em causa se os projetos ligados aos mercados eletrónicos teriam a rentabilidade esperada, uma vez que até ao momento era praticamente nula.
Durante o primeiro trimestre de 2001, a gestão da ParaRede decidiu restruturar as áreas de negócio ligadas aos mercados eletrónicos, tomando a decisão de os alienar e voltar a focar a sua atividade nas áreas nucleares, nas quais continuava a ter uma posição de liderança no mercado nacional. Essa restruturação foi aprovada por todos os acionistas e implicava um aumento de capital. Esse compromisso foi comunicado ao novo CEO.
Após a assembleia geral da empresa, em abril de 2001, o compromisso de aumento de capital não foi cumprido por divergências frontais entre os dois principais bancos acionistas da ParaRede. Este processo arrastou-se até setembro desse ano, o que originou grandes dificuldades na gestão da empresa pela nova equipa executiva
A não entrada dos fundos previstos e necessários para a realização da restruturação fez com que a nova equipa de gestão deixasse de comunicar com o mercado, com os analistas, provocando uma desconfiança crescente sobre a atividade da empresa, levando a uma forte desvalorização da ação da ParaRede.
Tudo isto foi agravado por uma inabilidade comercial, levando à queda significativa de fecho de negócios. Anteriormente os gestores fundadores envolviam-se diretamente no negócio, sendo responsáveis por uma percentagem significativa dos mesmos. Isso não aconteceu posteriormente.
“Em 2000, os investimentos realizados na exploração dos mercados eletrónicos foram errados”.
Se pudesse, o que teria feito de diferente hoje?
Só quem não toma decisões não erra. De uma forma geral penso poder dizer que o percurso da ParaRede foi notável, mesmo com decisões por vezes menos conseguidas, mas que não colocaram em causa o essencial da evolução do negócio e do seu posicionamento no mercado. Isto até 1999. Em 2000, os investimentos realizados na exploração dos mercados eletrónicos foram errados.
Que lições aprendeu na ParaRede e que aplica enquanto CCO da Saphety?
O percurso profissional que tive na ParaRede colocou-me perante múltiplos desafios. A experiência acumulada na gestão de equipas multifacetadas, a construção de dinâmicas e estratégias de internacionalização, os processos de relação com diferentes acionistas, em resumo, a experiência na construção de uma “start-up” que veio a ser uma das principais empresas de tecnologia em Portugal, a gestão das diferentes fases da sua vida, ajudaram-me na definição do posicionamento estratégico da Saphety nas áreas comercial e de marketing da empresa e, nos últimos anos, na gestão executiva da mesma, em conjunto com os meus colegas de gestão.
O que ainda gostaria de fazer e não teve oportunidade?
Existe tanta coisa para fazer. Penso que numa determinada fase da minha vida poderei eventualmente ajudar outras empresas de tecnologia a pensar os seus planos estratégicos, a acelerar os seus processos de crescimento, a evitar que cometam algumas decisões menos acertadas.
Existem também alguns fundos em Portugal não especializados em investimentos em empresas de tecnologia e que pretendem angariar competências neste setor. É também uma área que me poderá interessar.
Respostas rápidas:
O maior risco: não arriscar
O maior erro: egocentrismo
A maior lição: as pessoas
A maior conquista: as relações humanas
* João Pereira, autor do livro ParaRede e atualmente CCO (Chief Commercial Office) na Saphety