Opinião
Regressar ou não regressar? Será esta a questão?
Desde 2020 que os temas “regresso ao escritório”, “trabalho remoto”, “trabalho híbrido” preenchem os títulos e os textos de incontáveis artigos. Arrisco dizer que todas as semanas fazem manchetes.
É quase uma novela, ou série, pois parece que as novelas passaram de moda. Ora se defende que “em casa é que se trabalha bem”; ora se mostra suspeita ou se acusa de preguiça quem prefere não trabalhar no escritório; ora se discutem índices de produtividade, de controlo, de flexibilidade e de capacidade de adaptação, com posições alternantes; ora se defendem as poupanças de tempo e de dinheiro com idas e vindas entre as casas e os escritórios, e os benefícios para o almejado “equilíbrio entre vida e trabalho”; ora se multiplicam queixas com as intermináveis reuniões; ora se associa a incontornável degradação generalizada da nossa saúde mental; ora se diz que é no escritório que as pessoas colaboram e são criativas; ou que temos de respeitar a diversidade, em sentido lato e estreito, no que respeita às preferências sobre o estilo e formas de trabalho. E as organizações dividem-se entre o medo de perder as pessoas, que parecem fugir como nunca tinham feito, e os esforços para as aliciar de volta, não as querendo perder de vista nem desconsiderar os investimentos, por vezes avultados, na criação dos “escritórios do futuro”.
Simplifiquemos. Quem conhece o futuro (dos escritórios e do trabalho)? Crenças e ficções à parte, creio que ainda ninguém. Quem sabe do que precisam as pessoas? Sendo muito, muito mais discutível, parece-me que cada vez mais vale a posição em que “cada um sabe de si”. Mas até disso tenho dúvidas. Voltarei aqui. Antes, um pouco mais de novela. Imagine um casal. Estas duas pessoas vivem juntas há anos suficientes para terem uma vasta coleção de experiências partilhadas. Nesse arquivo imaterial existem inúmeras irritações, incontáveis manias e trejeitos, grandes e pequenas aprendizagens, existe tolerância e aceitação, cedências e choques, semelhanças e diferenças, carinho e repulsa, certezas que alternam com curiosidade que conduz a descobertas antes julgadas impossíveis. Um casal “normal”, dir-se-ia, cuja relação poderia ser descrita com uma palavra: bonomia.
Numa determinada fase, cada pessoa, à sua maneira, sente que deveria aproximar-se da outra. Sentem-se afastadas. Felizmente, conseguem ter uma boa conversa sobre a sua situação. Decidem fazer diferente, fazer mais por estarem mais próximas. Pouco tempo depois dessa conversa, uma decide comprar flores para oferecer à outra. Chega à porta de casa, toca à campainha, em vez de usar a sua cópia da chave para entrar, como seria hábito, e espera com o ramo de flores escondido atrás das costas. Quando a porta se abre, nota surpresa e expetativa na expressão de quem a abriu. Instantaneamente sente calor, que identifica como confiança, coragem e afeto, alguma vergonha que a fazem sorrir e revelar o que trazia consigo. Quando mostra as flores, nota que a surpresa muito rápido se transforma em tristeza e a expetativa em desilusão.
“Que cara é essa?”, pergunta quem trazia as flores.
“Esta é mais uma prova de que tu não me escutas…”, respondeu quem nem esboçou um movimento para as receber.
“Como assim? Tínhamos acordado em fazer diferente, em fazer mais para nos aproximarmos. Sei que adoras flores e por isso comprei-te um ramo de rosas, como não fazia há muito tempo”.
“Sim, adoro flores, mas odeio rosas vermelhas”.
Este é um exemplo do que se pode chamar de “comunicação paralela”. Duas pessoas que estão conversar sobre um mesmo assunto, com intenções aparentemente alinhadas, mas com entendimentos, sentimentos e, consequentemente, conclusões e repercussões diferentes. Tal fenómeno é frequente quando o tema em questão, a fonte de desacordo ou de desentendimento, é mais profundo dos que os tratados na superfície, ou, por essa ou outra razão, é opaco para quem os endereça.
Entreter-me-ei com a hipótese que enuncia que em relação ao tema “regresso ao escritório” algo semelhante à historieta anterior se passará. Na superfície, parece ser uma disputa entre “controlo” e “liberdade”. Percebemos que podíamos trabalhar bem a partir de casa, por vezes até melhor, quando a isso fomos obrigados. Por instinto, tendencialmente reagimos mal quando nos retiram um benefício. Ninguém gosta de ter de devolver um presente que foi oferecido e de que se gosta. Depois de perceber que é possível, que até pode ser melhor ter um regime de trabalho remoto ou híbrido/flexível, por que razões me obrigam a sair de novo de casa para trabalhar?
Do outro lado há argumentos válidos. Parece que quando nos encontramos em presença, floresce a criatividade e a capacidade de colaboração. Além disso, a cultura dos grupos, equipas e organizações também parece gerar-se e manter-se mais facilmente quando as pessoas estão próximas. E há ainda outro argumento relacionado com o isolamento que, por sua vez, se associa à saúde mental. Embora em relação a essas ligações existam evidências que as comprovam, parece-me um argumento um pouco interesseiro.
A necessidade de controlo de uns colide com o desejo de liberdade de outros. Faz lembrar “os corpos dóceis” de Foucault, onde quem dirigia tanto fábricas, como prisões e hospícios empregava meios arquitetónicos e estratégias de controlo corporal para poder melhor controlar os respetivos ocupantes. Hoje, no mundo do trabalho, já se controla menos o corpo mas a ideia de controlo permaneceu. Não são só os corpos que pretendem dóceis mas as mentes. Ainda assim, mesmo o corpo tem de estar envolvido nas famigeradas, incessantes e sequenciais reuniões que obrigam a presença física, ainda que há distância. É uma forma de controlo de corpos e mentes, intermediada pela tecnologia, mesmo que seja essa a intenção consciente.
Uma prova de que se sabe pouco sobre o futuro do trabalho é a evidente contradição que se verifica nas grandes organizações tecnológicas. Se por um lado possibilitam o trabalho à distância, ao criarem as ferramentas usadas por mais pessoas no mundo para tal efeito, por outro são estas mesmas organizações que estão a chamar, com bastante veemência, as suas pessoas de volta para os seus escritórios. Zoom, Google, Salesforce, Meta, Amazon, Apple são apenas algumas das maiores e mais conhecidas a adotar posições de força que contrariam o trabalho remoto.
O panóptico e os patamares fabris encontraram os seus equivalentes corporativos nos cubículos, depois no conceito open space e agora temos os tais escritórios do futuro, desenhados para “encontros fortuitos e ambientes criativos e colaborativos”, que mais parecem eufemismos. Além disso, agora tudo se vê e todos somos vistos através de tecnologias que transportamos e sem as quais já não conseguimos trabalhar (refiro-me, sobretudo à imensa fatia de “trabalhadores do conhecimento”, deixando de parte, embora não completamente, muitas outras atividades e profissões que ainda são imprescindíveis). Mesmo em casa, estamos “presos” pela tecnologia, como nos avisa Byung-Chul Han nos seus vários livros e John Berger em “Entretanto”.
A prisão mais severa é metafísica na sua natureza, que está entre os nossos sentimentos e ideias. Por isso mesmo, também está nos nossos corpos. É a pior das prisões. Não o é por ser invisível, deixou de o ser para muitos de nós. É demasiado evidente para ignorar que estamos “em crise”. Crise climática, crise financeira, crises bélicas, crises humanitárias. Seria de pensar que com tantos supostos avanços e tanta evolução estaríamos melhor. E estamos, mas, ao mesmo tempo, também estamos muito pior. Ao nível individual, há cada vez mais pessoas insatisfeitas com o que fazem; mais pessoas a lidar com problemas sérios de saúde (física e mental), independentemente da sua idade; as desigualdades não se têm diminuído, pelo contrário. Cada vez consumimos mais, produzimos mais, gastamos mais, poluímos mais, vivemos mais mas não sei se melhor.
A prisão não é invisível, mas é difusa. Por isso é difícil de a identificar e de a nomear. É a prisão em que todos vivemos, a prisão com que todos vivemos, apesar das desigualdades. É uma prisão que está além da superfície. O mundo do trabalho está quebrado e está a quebrar-nos as vidas. Ninguém tem razão, estamos todos errados. Precisamos todos de mudar: pessoas, organizações e instituições. Para descobrirmos o que precisamos de mudar, a todos os níveis, temos de fazer as perguntas certas e prestar atenção ao que realmente importa. Será que “voltar ou não voltar ao escritório?” é a que mais importa?