Opinião

Problemas teimosos

João César das Neves, economista e professor catedrático

Andamos envolvidos em questões persistentes, repetitivas, recorrentes, que ressurgem e permanecem apesar de todos os esforços de solução. Elas ocupam grande parte do debate público, embora de forma equívoca, pois geralmente resultam, não de problemas de gestão, mas de erros de análise.

Portugal ardeu este Verão, como ardera antes e voltará a arder no futuro. O país sofre de muitos outros problemas que afligem sucessivos governos, dos atrasos na Justiça às falhas do SNS e baixa produtividade. Também nas empresas e instituições são múltiplas as dificuldades que se repetem teimosamente, criando contínuas dores de cabeça à administração. Na maior parte dos casos, por baixo dos debates, queixas e acusações existe um erro lógico básico.

A vida é mudança e instabilidade. Se um malefício persiste, apesar de sucessivos esforços para o evitar, a causa não pode estar na gestão quotidiana, a qual lida apenas com as ocorrências. Neste mundo contingente só duas forças concedem alguma continuidade: a natureza e a estrutura.

Se virmos bem, grande parte das queixas recorrentes devem-se à simples realidade das coisas. São verdades incómodas mas inelutáveis. O calor do verão sempre gera fogos, como o frio provoca gripes; o envelhecimento agrava as necessidades de saúde e a atividade das empresas embate em obstáculos próprios da vida económica. Todos as entidades sempre sofreram destas dificuldades e sempre sofrerão, que realmente não constituem problemas, mas dados dos problemas. Por muito horríveis que sejam, temos de aprender a viver com eles. O que não tem remédio, remediado está. Só uma enorme arrogância assume a mudança da essência da situação.

Essa arrogância é a bandeira da era tecnológica. Vivemos mergulhados em ideologia ativista, impondo a certeza que todos os sonhos estão ao alcance, desde que nos esforcemos. Falar de natureza das coisas é derrotismo, complacência, inanidade. Assim, candidatos a gestores e políticos garantem e apregoam repetidamente a sua ilimitada capacidade para resolver tudo, críticando os que têm poder por não realizarem o impossível. Deste modo gastamos tempo em debates ilusórios, procurando soluções para problemas que são simplesmente a nossa sombra.

É verdade, porém, que a era tecnológica conseguiu soluções para muitos dramas que antes se pensavam inelutáveis. Isso vê-se bem quando constatamos que várias das dificuldades de que padecemos arranjaram remédio noutras paragens. Nesse caso, a origem do problema teimoso vem, não da natureza, mas da estrutura. Aí surgem, não falsos problemas, mas problemas que realmente queremos ter.

Porque é que os verões portugueses geram fogos numa dimensão que ultrapassa outros verões? Porque muita gente ganha muito com isso. Porque é que a Justiça e o SNS nunca mais resolvem os seus problemas crónicos? Porque aquelas corporações que realmente controlam esses setores preferem os custos dos problemas atuais aos custos da solução. Porque é que a produtividade é tão baixa na nossa economia? Porque inúmeras forças preferem sugar já as suas rendas, em vez de investir e aumentar o bolo para todos. Em todos estes danos existe uma solução possível, mas apenas em abstrato; no concreto da nossa circunstância, esses remédios nunca vão resultar. O mais irónico é que, com frequência, aqueles que se queixam e acusam a liderança são os verdadeiros responsáveis pelo prejuízo que repudiam.

De algum modo, este segundo erro lógico é uma variante do anterior. Nos males causados pela natureza, o equívoco está em atribuir à gestão, política ou empresarial, a capacidade de mudar aquilo que, intrincado na própria estutura da realidade, realmente lhe escapa. Nos estragos que advêm da estrutura, o lapso está em esquecer que qualquer comunidade, nacional ou comercial, existe na composição de uma multidão de interesses, a maior parte dos quais é alheia ao líder.

Um problema, por definição, ter de ter uma solução. Se ele persiste apesar de tudo é porque, em geral, caímos no sofisma de considerar problema algo que não o é.

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João César das Neves

João César das Neves

Licenciado e doutorado em Economia, João César das Neves é professor catedrático e presidente do Conselho Científico da Católica Lisbon School of Business & Economics, instituição onde, ao longo dos anos, já desempenhou vários cargos de gestão académica. Também possuiu um mestrado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e um mestrado em Investigação Operacional e Engenharia de Sistemas pelo Instituto Superior Técnico. Ao longo do seu percurso profissional também esteve ligado à atividade política. Em 1990 foi assessor do... Ler Mais..

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