Opinião
Portugal a arder: inevitável ou inaceitável?
Portugal voltou recentemente a ser devastado por centenas de incêndios, que avançaram sem tréguas na zona Norte do país. Os incêndios são, infelizmente, inevitáveis, mas parte das suas consequências parecem-me inaceitáveis. Tanto mais inaceitáveis, quanto mais controláveis ou gerenciáveis as causas ou os motivos que os possam ter originado.
Portugal voltou recentemente a ser devastado por centenas de incêndios, que avançaram sem tréguas na zona Norte do país, vitimando várias pessoas e destruindo casas e outros bens materiais. Semelhante catástrofe tinha acontecido em 2017, nessa altura com um maior nível de gravidade, resultando na morte de várias dezenas de pessoas e na destruição de uma vasta área florestal, com avultados prejuízos materiais.
Este não é um fenómeno exclusivo nacional; outros países, tão ou mais desenvolvidos do que o nosso, têm sido igualmente fustigados por incêndios devastadores e de grandes dimensões.
Volvidos sete anos desde a fatídica catástrofe de 2017, recupero parte de um texto que escrevi à data, por ocasião desta nova vaga de incêndios que assolou o país.
Não tenho a competência necessária para analisar estas catástrofes do ponto de vista científico e desconheço os detalhes das suas causas-raiz e dos motivos que justificam a extensão da sua gravidade, mas entendo que podem encaixar-se numa (ou em várias) das quatro categorias seguintes:
- Condições puramente naturais, logo humanamente incontroláveis, como sejam a alta temperatura, o forte vento ou o baixo nível de humidade, cuja ocorrência em simultâneo produz uma combinação explosiva em áreas florestais, mais sujeitas ao risco de combustão;
- Atos negligentes na esfera privada, portanto humanamente evitáveis ou controláveis, resultantes de ações involuntárias ou imprudentes (ex.: queimadas) ou à falta de zelo dos proprietários de terras na adoção de medidas preventivas adequadas;
- Atos negligentes na esfera pública, seja por pessoas com responsabilidade política ou por organismos ou entidades públicas, portanto politicamente gerenciáveis ou controláveis, como sejam, por exemplo e a título meramente hipotético, a seleção de pessoas com fraca capacitação para o exercício de funções de liderança ou de gestão, o inadequado ordenamento do território, a falha na disponibilização dos recursos técnicos e humanos suficientes (em quantidade e qualidade) ou a descoordenação – acima do que será aceitável num cenário de stress – das forças de combate aos incêndios, a inabilidade política na definição e execução de estratégias (apartidárias) de médio-longo prazo, ou a incapacidade de neutralização de interesses económicos, entre outros; ou, por fim,
- Atos de natureza dolosa, obviamente voluntários, indesculpáveis por princípio e que deverão ser criminalmente punidos, como os praticados pelos denominados “incendiários”, com ou sem motivações de natureza económica ou outros, que considero serem tanto menos controláveis quanto maior o número, simultaneidade e dispersão geográfica desses mesmos atos, tornando altamente complexo um efetivo combate aos incêndios.
Estas causas são, a meu ver, tanto mais intoleráveis quanto maior o nível de gestão ou de controlo humano, tecnológico ou mesmo político que é possível ter-se sobre elas – assim, parece-me que a 1.ª causa será mais tolerável do que a 2.ª e esta mais do que a 3.ª; a 4.ª causa é, obviamente, absolutamente intolerável.
Optei, propositadamente, por distinguir os atos de natureza negligente nas esferas privada e pública, por dois fatores:
- Os da esfera pública são praticados por um conjunto limitado e conhecido de pessoas, organismos ou entidades, contrariamente aos primeiros que podem, em teoria, ser praticados por um universo muito mais abrangente e aleatório de pessoas; e, mais importante,
- Essas pessoas, organismos ou entidades públicas estão sujeitos e subordinados a uma liderança política e a processos de governança e gestão da coisa pública, tendo acesso (não ilimitado, é verdade) a recursos humanos, financeiros e materiais que lhes confere (ou deveria conferir) a capacidade necessária para planear, estruturar, coordenar e executar estratégias preventivas e reativas de combate aos incêndios, sendo portanto legítimo aos cidadãos exigir a apresentação de resultados satisfatórios nessa matéria.
A conjugação destes dois fatores torna, a meu ver, os eventuais atos negligentes praticados na chamemos-lhe esfera pública menos toleráveis do que os praticados na esfera privada (ainda que estes também não devam ser tolerados).
Os incêndios são, infelizmente, inevitáveis, da mesma forma que o são os acidentes rodoviários, os afogamentos nas praias ou as filas de trânsito nas vias mais movimentadas das cidades. As circunstâncias de cada uma dessas situações, aliado à quase sempre infalível lei das probabilidades, acabam, infelizmente, por determinar essa inevitabilidade.
Por outro lado, já me parecem inaceitáveis as consequências – pelo menos uma parte delas – ocorridas em Portugal na sequência desses mesmos incêndios. Tanto mais inaceitáveis, quanto mais controláveis ou gerenciáveis as causas ou os motivos que possam ter originado tais incêndios.
Não existe, como é óbvio, uma fórmula mágica que permita evitar os inevitáveis incêndios e é injusto e irrazoável esperar que o Estado – essa figura abstrata, mas tão relevante em Portugal – tenha uma varinha de condão que evite essas catástrofes ou as suas nefastas consequências. Cumpre até aqui reconhecer o esforço e melhoria da capacidade de resposta, que me parece ser evidente.
Dito isso, parece-me evidente que o Estado pode e deve fazer mais e melhor.
Sabendo-se que as causas inerentes às 1.ª, 2.ª e 4.ª categorias acima elencadas são, por diferentes motivos, mais ou menos incontroláveis, resta aos cidadãos esperar que as estratégias e ações políticas ou de gestão pública contribuam, na medida do possível, para mitigar as restantes causas, mesmo sabendo-se de antemão ser utópico poder controlá-las em absoluto.
Sei que escrever ou opinar é (muito) mais fácil do que pensar ou executar tais estratégias ou ações, mas precisamos que os vários agentes políticos, em conjunto com os gestores públicos, estejam imbuídos de um espírito colaborativo e apartidário no sentido de debater e adotar estratégias simultaneamente proativas – na antecipação de cenários e correspondente legislação e execução de medidas preventivas (por menos agradáveis que possam ser e por mais distantes que os respetivos resultados possam aparecer) – e reativas, na minimização das consequências dos inevitáveis incêndios.
Trata-se, naturalmente, de (mais) um grande desafio este que está nas mãos das instituições políticas e públicas do país (no caso, em relação ao tema dos incêndios, mas poderia aplicar-se a tantas outras matérias), mas nem por isso os cidadãos devem deixar de exigir resultados satisfatórios a esse respeito.