Opinião

Pesadelo em Tuga Street

Nuno Madeira Rodrigues, Country Manager PT Arnold Investments

Ontem tive um sonho daqueles que não me vou esquecer assim tão depressa. Melhor, um pesadelo. Um desses pesadelos em que sonhamos que estamos a cair, mas, ao contrário de tantos outros, neste batia mesmo no fundo e teimava em não despertar.

Tal foi a intensidade que não podia nem queria sofrer sozinho e decidi partilhar o seu conteúdo. O sonho nem começou mal de todo, confesso. Sonhei, logo no início, que vivia num país solarengo, com ótimas praias, gente afável e que sabia receber, boa comida e boa bebida, locais agradáveis para passear e viver, uma História rica e cheia de pontos de interesse, cultura diversificada, tolerância religiosa, geografia de contrastes, enfim, neste prelúdio claramente sonhei que vivia num paraíso.

Depois, como em tudo na vida, o sonho evoluiu. Sonhei que me licenciava cheio de esperanças e que, passados meses e meses, só me restava como opção trabalhar em algo abaixo das minhas qualificações e do investimento que tinha feito na minha educação. Perdido, apareceram algumas personagens no sonho que me repetiam insistentemente “emigra, emigra, o melhor que fazes é emigrar”, sendo essa aparentemente a solução para os meus problemas. Ignorei-os, monstros esses que nos povoam o subconsciente e me queriam afastar daquele idílico canto onde me encontrava.

Lá me desembaracei e consegui um raio de sol que me dava alguma estabilidade financeira. Pedi ajuda aos meus pais para encontrar uma casinha pequena que me desse autonomia, mas com o que ganhava só se arranjasse algo a horas do meu novo local de trabalho. E o pouco que me sobrava para viver era todo gasto nos transportes, isto claro está, quando não estavam em greve. Ainda assim não desistia porque via os senhores que apareciam na televisão, aqueles que mandavam neste paraíso, a dizer que éramos os melhores, que ninguém se comparava a nós, que tudo estava no lugar certo para melhorar cada vez mais a nossa – e a minha – vida. Que bom que foi acreditar nessa mensagem. Até recebi alguns subsídios e apoios para o passe social. Era um navegante orgulhoso neste momento.

A vida parece que passou depressa nestes primeiros anos do sonho e de repente vi-me a comprar um carro, velho e usado, mas meu! Que sensação ótima de autonomia e independência que isso me criou. Andei de peito feito durante dias até que tive de parar o carro e comprar o passe porque já não tinha dinheiro para os impostos e para combustível. Mas os senhores da televisão, outros desta feita, mas sempre os mesmos, diziam que agora iam ajudar-me a mudar para um veículo elétrico, que eu ia ser um soldado do ambiente que faria crescer ainda mais o nosso país. Mas por mais subsídios que me atirassem, eu continuava a não ter dinheiro para este luxo e acabei por voltar ao meu passe social e a umas magras refeições sem grandes luxos porque a inflação não me permitia melhor.

No trabalho até conseguia ir subindo pouco a pouco os meus rendimentos, mas quando me davam um aumento, por vezes acabava por receber menos do que antes! Era qualquer coisa relacionada com escalões. Lá os senhores da televisão explicaram que aquele dinheiro que me tiravam permitia que cada vez as coisas fossem melhores. Os hospitais eram ótimos, as escolas eram gratuitas e davam educação a todos. Mas os senhores dos hospitais e das escolas não entendiam isto e estavam sempre na rua em greve. Não percebi como era possível eles não ouvirem o que diziam os senhores da televisão, não me fazia sentido isto.

Lembro-me de ter de fazer uma viagem ao estrangeiro em trabalho! Estava tão excitado quando cheguei ao aeroporto. Sentei-me numa sala de espera a ver as notícias e lá estavam os meus amigos da televisão. Falavam de um novo e maior aeroporto! De linhas de comboios super-rápidos que tornavam o meu paraíso num destino mais próximo dos outros. Mas a senhora que falava no altifalante dizia que o meu voo tinha sido cancelado devido a uma greve. Qualquer coisa relacionada com problemas na nossa companhia aérea. Parece que os senhores da televisão queriam vender esta joia aos estrangeiros. Não acreditei em nada disso. Ainda há pouco a tinham voltado a comprar, que estupidez era essa? De facto, não se pode acreditar nas notícias. Só naqueles senhores que já tão bem conhecia, mesmo que muitos deles estivessem agora em várias empresas privadas, alguns até naquela onde eu trabalhava. Era normal, tinham ajudado essas empresas a crescer e agora fazia todo o sentido terem sido convidados para trabalhar nelas. Parece-me uma lógica evidente! Enfim.

A verdade é que apesar de tantos problemas ou dificuldades, lá fui fazendo a minha vida com a confiança que estava nas mãos certas. Mas um dia fiquei doente. Fui ao hospital e garantiram-me que me poderiam ajudar. Pediram para voltar seis meses depois. Tristonho, peguei no carro para ir a um médico particular, mas furei um pneu num buraco da estrada. Não era nada como aquela autoestrada no interior que os senhores da televisão tinham inaugurado há uns meses e que, como passavam lá poucos carros, o pavimento era um brinco. Só no meu país é que se viam estes luxos e modernidade. Mas na minha rua era mais difícil, sim.

Tenho de admitir que tudo isto já me criava alguma ansiedade. Mas como não tinha vaga num psiquiatra no hospital público, acabei por não ter também dinheiro para pedir ajuda e assim fui andando. Conheci uma pessoa! Que bom que foi ter essa notícia e ainda mais os senhores da televisão diziam sempre que na estrutura familiar havia vários benefícios. Tive um filho passado pouco tempo e não podia estar mais feliz. As tais tabelas e escalões agora deixavam-me mais alguns trocos na conta todos os meses, mas isso não chegou. As creches estavam cheias e acabei por gastar mais a meter o meu filho numa creche privada do que aquilo que ganhava extra todos os meses. Já não consegui acreditar quando os tais senhores, já outros, mas ainda os mesmos, diziam que eu tinha contribuído para o desenvolvimento do país ao apoiar a natalidade.

Estava já perto da meia-idade no sonho. Era cada vez mais um pesadelo. Tinha uma casa pequena, sem luxos, o que ganhava desaparecia. As férias e coisas boas que o meu país oferecia só estavam ao alcance de alguns, quase todos estrangeiros. Mal ouvia a minha língua em algumas zonas do país. Na televisão os senhores gabavam os índices internacionais que tínhamos, mas se o meu país era dos mais felizes do mundo, eu garantidamente não era. Estava desesperado, sentia-me num ciclo sem saída, incapaz de melhorar a minha vida e da minha família. Passava noites em branco, comia mal, trabalhava pior e sem perspetivas de evolução.

Senti-me desaparecer e de repente, acordei! Em sobressalto, transpirado, a arfar. Contei o meu sonho à minha mulher. Ela disse-me simplesmente que não era um sonho, mas sim a nossa vida. Praguejei até não poder mais. Lancei invetivas aos senhores da televisão enquanto anunciavam que iam embora devido a umas confusões políticas, mas que todos eram muito honestos e sérios. Não me restava alternativa a este pesadelo, emigrei.

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Nuno Madeira Rodrigues

Nuno Madeira Rodrigues

Nuno Madeira Rodrigues é atualmente coordenador do Departamento de Direito Imobiliário na Pinto Ribeiro Advogados. Anteriormente, foi Country Manager PT Arnold Investments, Chairman da BDJ S.A, Chairman da Lusitano SAD, Administrador do Grupo HBD e Presidente do Conselho de Administração da Lusitano, SAD, e do Conselho Fiscal da Associação Lusófona para as Energias Renováveis. É ainda Vice-Presidente do Conselho Fiscal da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários, Membro do Conselho Consultivo da Plataforma Sustentar e Presidente da Direção da... Ler Mais..

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