Opinião

Pensar sobre o sentir

Mário Ceitil, formador e professor universitário*

Qual é a principal competência emocional que um líder deve ter? Esta pergunta tem-me sido colocada inúmeras vezes, em aulas e workshops que tenho entregado sobre o tema da Inteligência Emocional.

E, quando por tática de coreografia pedagógica, devolvo a pergunta aos participantes, as respostas que obtenho são, de um modo geral, alinhadas com aquilo que poderemos considerar como as competências mais “clássicas”, chamemos-lhes assim, desta disciplina: a saber, praticar a empatia, saber escutar, reconhecer e controlar as próprias emoções em situações de tensão, manter atitudes serenas em contextos de conflito, ser resiliente perante a adversidade, entre outras.

Embora sejam todas elas inegavelmente essenciais para se poder categorizar uma pessoa como emocionalmente inteligente, pela minha parte julgo que a competência emocional que é definitivamente mais “fundacional” para os líderes é o ser capaz de assumir que a sua inteligência emocional é sempre insuficiente, acrescida da consequente humildade para se colocar a si próprio permanentemente em perspetiva e a coragem para mudar práticas e comportamentos manifestamente não eficazes.

Sendo, na minha perspetiva, uma competência, em matéria de gestão das emoções, tão definitivamente importante, aquela, “com a qual e sem a qual nós seguramente não ficamos tal e qual”, é, todavia, também uma das que apresenta maiores desafios e dificuldades em manter práticas que alcancem níveis elevados de proficiência, de forma continuada e sustentada.

Dir-se-á que esta competência não apresenta, afinal, nada de novo; dir-se-á que ela consta, ou está pelo menos subentendida, na já “clássica” competência de Autoconsciência, justamente uma das competências que integra o portefólio de competências emocionais do primeiro modelo de Inteligência Emocional proposto nos anos 90 por Daniel Goleman (1998).

Sustento, no entanto, que ter uma desenvolvida Autoconsciência sobre os próprios estados emocionais, entendida como a capacidade de reconhecer a cada momento as emoções que estamos a sentir e saber antecipar os seus possíveis efeitos sobre os nossos comportamentos, pode não ser, em si mesma, suficiente para que cada pessoa consiga “colocar-se em perspetiva” e manter-se em situação de permanente “vigilância crítica” relativa aos seus modos de viver e lidar com as próprias emoções.

Dito de outro modo, se a Inteligência Emocional é, “usar o pensamento sobre o sentimento (e o sentimento sobre o pensamento) para guiar o nosso comportamento” (2009), é de admitir que este jogo complexo entre duas supostas “entidades cerebrais”, a cognitiva e a emocional, que, estando embora estreitamente conectadas, têm modos de expressão e de significação diferentes, possa ser influenciado por “vieses cognitivos”, muitas vezes inconscientes, que conduzem a uma distorção, por vezes grosseira, da perceção que cada um faz  das suas próprias vivências emocionais e, no limite, das conceções que cada um constrói sobre si próprio e sobre os outros.

Uma dessas formas de enviesamento é, por exemplo, aquilo a que, com alguma ligeireza estilística, e mesmo concetual, de que peço desde já desculpa aos leitores mais rigorosos, podemos designar por “chico- espertice” emocional.

Como suponho que todos nós já travámos conhecimento, em algum momento e em alguma parte, com personagens a quem tal designação é por vezes imputada (correntemente sem o termo “emocional” associado) sabemos que uma das características dominantes do “chico-esperto” é ter uma noção muito convicta e bem estruturada sobre a sua própria importância e julgar possuir uma distintiva clarividência sobre tudo o que se passa à sua volta: ele, ou ela, é sempre o mais inteligente, o que sabe mais e, pelo seu alegado profundo conhecimento dos desvarios próprios da natureza humana, é sempre o que “topa” os jogos escondidos por detrás das opacidades de uma aparente normalidade que, finalmente, nunca é aquilo que parece ser.

Para o “chico-esperto”, há sempre alguém pronto a trair, há sempre uma revelação que se esconde, há sempre algum manhoso que planeia crime sem se saber onde e há sempre alguém que, inapelavelmente, irá cair.

Em relação a este tipo de personagem, não podemos, em bom rigor, afirmar que é totalmente desprovido de inteligência emocional, na medida em que apresenta alguma consciência das emoções que o movem e, sobretudo, tem uma boa literacia sobre as expressões emocionais dos seus interlocutores, indispensável aliás para obter sucesso na construção dos seus enredos, talento que aliás partilha com outra espécie de “enviesadores” impenitentes: os manipuladores.

No entanto, tanto a uns como a outros, falta-lhes efetivamente essa capacidade de se “colocarem em perspetiva” e a humildade indispensável para serem autopromotores da sua própria mudança.

Tanto uns como outros, dão muito maior relevo ao que sentem sobre o que pensam,  mantendo o seu pensamento sob a mistificação do “manto diáfano da fantasia”,  mas são completamente ineficazes em usar o “pensamento sobre o sentimento”, ou seja, em adotar o distanciamento cognitivo para perceberam que o que os move é de facto um sentimento profundamente egocêntrico de serem “mais do que os outros”, esse tipo particular de emoção que os leva a só se sentirem “grandes” através da menorização dos outros.

São, por isso, incapazes de perceber que a gratificação emocional que obtêm, sempre instável e pouco duradoura, esconde, no fundamental, uma personalidade marcada por um profundo défice de autoestima e de autoconfiança que só se apazigua pela procura obsessiva da desgraça alheia.

Neste sentido, a “chico-espertice” emocional, tal como a sua parente manipulação, não passam de um falacioso, e fracassado, antídoto, contra um profundo sentimento de iniquidade.

Por isso, é arriscado confundir a Inteligência Emocional com uma mera “cosmética comportamental”, pintada à pressa em pessoas que apenas querem absorver receitas rápidas para influenciar os outros. Os tipos de enviesamentos cognitivos atrás referidos, assim o demonstram, e assim o relevam.

Para se ser consistente em termos de gestão das emoções, é indispensável essa capacidade de reconhecer que o “pensamento sobre o sentimento” é um processo contínuo e não um estado passageiro e que está permanentemente sujeito a vários tipos de enviesamentos que nos conduzem ao autoengano.

E é também indispensável saber assumir, com humildade, que nunca estaremos completamente preparados para enfrentar todos os muitos desafios do que é lidar cotidianamente com a surpreendente, mas magnífica, complexidade humana.

Em síntese, só será possível progredirmos eficazmente nas aprendizagens sobre estes temas quando, sobretudo e acima de tudo, tivermos uma consciência muito ativa e atuante de que, qualquer que seja o modelo, qualquer que seja a técnica que usarmos, só poderão, em última análise, ser plenamente eficazes quando cumprirem um integral e incondicional respeito pelo valor maior da dignidade humana.

Referências:
Goleman, D. (1998). Trabalhar com Inteligência Emocional. Lisboa: Temas e Debates
Neal, S., Spencer-Arnell, L. & Wilson, L. (2009). Emotional Intelligence Coaching. London: Kogan Page Limited.

 

*Docente convidado do ISCTE/Executive Education; Coordenador das Pós-Graduação em “Desenvolvimento Emocional e Coaching” do ISCTE/Executive Education; Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG -Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas.

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Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

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