Opinião

Os burocratas do digital

Rui Ribeiro, diretor-geral da IPTelecom

Há dias, num dos livros que estou a ler, estava escrita a seguinte frase: “a burocracia é como a pornografia: é muito difícil encontrar alguém que a defenda, mas há muito dela por aí disponível”.

De facto, quando verificamos a realidade de muitas empresas, encontramos elevadas quantidades de estruturas, de processos de autorização e de hierarquias funcionais, traduzindo inerentemente os modelos burocráticos que diariamente estão assentes nessas organizações.

Quantos de nós não vivemos já a situação de uma reclamação numa empresa, obtendo a resposta “compreendo, mas é assim que está definido”. Este é um dos exemplos mais simples, onde a preocupação não é a resolução da necessidade específica de um cliente, mas a garantia de cumprimento de um processo. É a lógica do importante no negócio ser a sobrevivência da empresa e não a satisfação da necessidade do cliente. Um claro esquecimento de que só há empresas se, e só se, existirem clientes satisfeitos.

É, neste contexto, que o mundo digital disruptivo tem criado alterações substanciais nos vários setores de atividade mundial, com o aparecimento de novas organizações de menor dimensão a competir de igual para igual com empresas com décadas de história com maior dimensão e mais recursos disponíveis. Mas porque têm singrado no panorama concorrencial? Pela simples razão de que para obterem os mesmos resultados (ou melhores) têm maiores níveis de agilidade e eficiências internas, de estruturas muito “flat” e processos de decisão com autonomias e de amplitudes alargadas definidas.

E não deveria ser normal uma empresa com história, com dimensão e recursos, manter-se competitiva, bastando para isso integrar-se no digital? Não!

Porque acham que estamos diariamente a ouvir que investimos em tecnologia vários milhares ou milhões de euros, mas ao mesmo tempo a existirem lamentos de “faltam-me recursos”?

O mindset de muitos gestores é precisamente esse: considerar que despejando tecnologia para cima da empresa deveriam resolver todo e qualquer problema de competitividade de mercado. A realidade é que transportam a burocracia que conhecem, os pequenos poderes que os mantém como chefes e a garantia das decisões controladas e definidas sem permissão de erros numa nova etapa tecnológica. Ou seja, nada mudam na forma de gerir, na forma de decidir, incorporando dessa forma todo o status quo da burocracia que vivem e controlam na nova etapa digital.

A burocracia no digital é contra a Transformação Digital, assumindo-se plena defensora da pura Digitalização. Saber gerir no século XXI, implica olhar para a tecnologia de hoje, conhecer o produto criado ou o serviço prestado e verificar como se faria se tudo começasse de novo.

A burocracia no digital é contra a mudança de processos, preferindo processos muito estruturados, com muitas decisões e etapas, centralizadas de preferência, ao invés de processos simples e de decisões no ponto de contacto e interação com o cliente.

A burocracia no digital não aceita o tempo real como um facto atual e constante, mas como um facto ocasional ou um mero lapso. Não assume que há necessidade de decisões rápidas e imediatas, com inerentes aceitações de erro e aprendizagem organizacional, privilegiando o protocolo dos grupos de trabalho e de consensos. Como alguém uma vez me disse: “se queres uma não decisão, cria uma comissão!”.

Em conclusão, estamos perante uma evolução disruptiva do mundo empresarial, onde muitos persistem em não assumir. Importa, por isso, saber gerir hoje e amanhã, de uma forma disruptiva perante modelos de gestão com a burocracia do passado. Saibamos estruturar a nova estratégia de líderes digitais e não de chefias digitais, de mudança de processos com as tecnologias de hoje e não de despejo de tecnologia nos processos do passado. Compreendamos que esta é uma mudança que não é imediata, nem à distância de um clique, mas uma mudança constante diária e de eliminação da burocracia.

Não seja burocrata digital, mas líder de uma nova geração de transformações digitais.

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Rui Ribeiro

Rui Ribeiro

Atualmente é professor da Universidade Lusófona e consultor de Transformação Digital, tendo tido várias atividades profissionais, entre as quais Head of Consulting & Technology na Auren Portugal, diretor-geral da IPTelecom, diretor comercial da Infraestruturas de Portugal S.A., diretor de Sistemas de Informação na EP - Estradas de Portugal S.A. e Professional Services Manager da Sybase Inc. em Portugal. Na academia é diretor executivo da LISS – Lusofona Information Systems School, e docente da ULHT. Rui Ribeiro é doutorado em Gestão... Ler Mais..

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