Opinião

O trabalhador “líquido”

Mário Ceitil, presidente da APG

Zigmunt Bauman, o grande filósofo da “pós-modernidade”, propôs, ao longo da sua vasta obra, que a humanidade entrou numa nova fase, que ele designou por “modernidade líquida”, cujas principais características têm sido tipificadas através de uma expressão ampla e frequentemente replicada nos mais diversos contextos do mundo dos negócios e das organizações: a de que no mundo atual ”change is the only permanence, and uncertainty the only certainty” (Bauman, 2012).

Para sublinhar bem a diferença entre a realidade atual e a de “há cem anos”, o célebre filósofo acentuou que, antes, ser moderno implicava a busca do “estado final da perfeição”, ao passo que agora a ação humana centra-se numa “infinitude de aperfeiçoamento, sem um claro estado final em vista”.

Neste sentido, a “modernidade líquida” caracteriza uma sociedade em que as pessoas vivem numa dinâmica de permanente inacabamento, onde não existem referências rígidas de pensamento e de ação, admitindo-se, por isso, a inevitabilidade do erro como emanação do estado natural da imperfeição.

Esta conceção da realidade alinha bem com a mais popularizada ideia de uma sociedade VUCA (Volatile, Unstable, Complex and Anmbiguous), acrónimo frequentemente citado justamente para assinalar o incontornável caráter de transitoriedade que caracteriza a sociedade atual, com as suas inevitáveis extensões para o mundo dos negócios e das organizações.

No entanto, aqui, como em muitas outras situações, uma coisa é engalanar as ideias com os artefactos mágicos da novidade; outra, bem diferente, é ousar a iniciativa de as pôr em prática, e assumir e saber gerir as respetivas consequências.

Concretamente no que diz respeito à gestão das pessoas nas organizações, a ideias “líquidas” de flexibilidade e de agilidade têm vindo a constituir importantes bases para dar resposta a alguns dos problemas mais críticos que as empresas têm tradicionalmente enfrentado, designadamente no que respeita à gestão dos vínculos laborais.

Na verdade, um dos maiores problemas que as empresas atualmente enfrentam à medida que se vão aprofundando as dinâmicas do “Mundo VUCA” é o facto de o efetivo humano que as constitui continuar a ser bastante fixo e, por vezes, pouco adaptável, ao passo que as demandas e exigências dos mercados vão sendo cada vez mais “flutuantes” e instáveis.

Esta situação gera uma contradição difícil de resolver: por um lado é problemático cortar no efetivo de colaboradores quando os negócios vão mal; por outro, é difícil de os voltar a ter quando as coisas começam a melhorar.

Esta dificuldade encontra uma resposta na progressiva disponibilização de profissionais liberais que oferecem os seus serviços a quem deles necessita, em registo pontual e sem exclusividade. Este tipo de pessoas, que crescem na nossa sociedade, não necessariamente porque não arranjam trabalho fixo, mas porque simplesmente não o querem ter, prestam os seus serviços aos seus clientes numa relação de “impermanência permanente”, que permite tipificá-los como “trabalhadores líquidos”. Muitos afirmam hoje que este é o arquétipo do profissional do futuro.

No entanto, vários estudos têm demonstrado que a “impermanência” na relação entre o profissional e a empresa tem efeitos negativos na lealdade dessas pessoas, podendo igualmente ter um impacto negativo nos colaboradores internos que sentem os tais “trabalhadores líquidos” como uns seres “estranhos”, não entrosados nem nas equipas nem na própria matriz social da organização.

Por vezes, são também considerados como pessoas cujo comportamento é bastante discricionário no que diz respeito ao esforço e dedicação que as empresas exigem aos internos, sendo difícil deles obter qualquer tipo de colaboração que vá para além do estipulado no respetivo “contrato (ou acordo) de agência”.

Não estando obviamente em causa neste breve artigo tomar partido por qualquer dos tipos de relação de trabalho aqui abordados, salientamos todavia que a instabilidade característica da “modernidade líquida”, precisamente pelo facto de ser mais instável e volátil, exigirá o estabelecimento de vínculos informais mais sólidos, alicerçados num contrato psicológico que garanta reciprocidade, dignidade na relação entre os agentes e que dê resposta a uma das necessidades humanas mais profundas e ancestrais: a necessidade de pertencer (belonging) e agir com o propósito de servir uma causa maior do que o próprio indivíduo.

E este é um enorme desafio que se coloca hoje tanto às empresas como às pessoas: gerar uma matriz de relacionamento colaborador/empresa que, independentemente dos aspetos formais ou institucionais que assuma, seja capaz de estimular uma verdadeira relação virtuosa alicerçada em complementaridades criativas e reciprocamente vantajosas.

Referências
BAUMAN, Z. (2012). Liquid Modernity. Malde, MA, USA: Polity Press

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Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

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