Opinião
E a fome?

Quando estamos no olho do furacão, quando se abate sobre nós uma tempestade, apenas o instinto de sobrevivência permanece. Foi este mesmo instinto de sobrevivência que nos fez reagir de forma tão rápida e eficiente após o anúncio da pandemia, por parte da Organização Mundial de Saúde, em março do ano passado.
Nesta segunda (ou terceira vaga) da pandemia alguns de nós perderam esse instinto de sobrevivência, devido a uma comunicação governamental errática, que nos transmitiu uma falsa esperança de liberdade, que mais tarde nos surpreendeu pela brutalidade do número de infeções provocadas pelo vírus.
António Coimbra de Matos, figura incontornável da psiquiatria nacional, cita Durkheim quando refere que, nos grandes períodos de guerra os suicídios diminuem, tal como, as depressões são mitigadas se substituídas por sentimentos de revolta. Efetivamente, o Governo e todos nós temos de entender que temos de encarar a COVID-19 como se de uma guerra se tratasse.
Temos de ser firmes, obstinados e revoltarmo-nos, diariamente contra uma doença invisível para a conseguirmos vencer. No entanto, o nosso equilíbrio fisiológico, precisa ainda de algo mais primordial, o primeiríssimo grau da pirâmide de Maslow. A necessidade de nos alimentarmos, algo que damos como garantido na sociedade ocidental.
O Governo, no epicentro da uma crise sanitária sem precedentes, tem acudido como pode num país sobre endividado, com avanços e recuos de quem decide mediante os desígnios da agenda mediática e com o receio de perder o eventual apoio parlamentar de partidos que votam, permanentemente, contra todas as renovações do Estado de Emergência.
Nas sociedades ditas avançadas, a fome, a verdadeira fome, é um conceito quase abstrato que é visto como um fenómeno longínquo, que se assiste pela televisão. Para ilustrar que lidamos mal com o tema dou o seguinte exemplo: entre 2014 e 2015 Bill Gates, através da Bill & Mellinda Gates Foundation, doou milhões de redes mosquiteiras a vários países africanos. As redes, ensopadas em inseticida, são um instrumento barato para mitigar o flagelo da malária. Até aqui nada a apontar, mas o que Bill, Melinda e centenas de consultores, economistas e industriais ligados à produção de redes não calcularam é que havia um problema maior: a fome.
Como resultado, milhares de redes foram utilizadas como utensílio de pesca criando um problema ambiental significativo nas costas marítimas da Nigéria, Moçambique ou em pântanos e rios de países como a Zâmbia. A pesca, no imediato, matou a fome mas o inseticida, ao embrenhar-se na água, desequilibrou ecossistemas matando peixes, desde a costa ocidental de África até ao lago mais longo do mundo. o Tanganica.
Não acredito em nenhuma das teorias da conspiração que correm mundo fora sobre o segundo homem mais rico do mundo. O ponto aqui é que, felizmente, Gates não faz ideia do que é sentir fome o que acaba por provocar o erro de avaliação relativo a esta situação. Utilizei este exemplo para voltarmos a Portugal no dia de hoje. Se a pandemia justifica medidas drásticas como fechar setores de atividade, obrigatoriamente, estas decisões têm de ser acompanhadas com ações concretas que mitiguem a devastação económica provocada em centenas de milhares de cidadãos.
O nosso país, parafraseando Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, neste momento, não tem famílias com carências alimentares tem, sim, famílias com fome. A falência de um estado de direito pode ser assinalada de várias formas, mas a incapacidade de suprimir necessidades alimentares é, talvez, a mais grave de todas.
O Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas (POAMPC) alargou, em 2020, a oferta de cabazes de 60 para 120 mil beneficiários mas o número de pessoas elegíveis disparou de tal forma que este esforço já não é suficiente. As listas de espera para centenas de organizações de beneficência de norte a sul do país aumentam exponencialmente, todos os dias.
O desenvolvimento económico tem destas coisas e, como tal, Lisboa, Porto, Setúbal e Braga são os distritos onde se registam mais pedidos. O fenómeno da gentrificação fez com que milhares de famílias nestas regiões, tenham o seu rendimento com uma taxa de esforço para pagamento de rendas habitacionais, demasiado elevada sendo os mais expostos à diminuição de rendimento.
Bombeiros e doentes 12 horas à espera para dar entrada nas urgências sem nada para comer foi algo muito penoso de observar, mas, poderemos racionalizar (diferente de aceitar) como algo extraordinário num cenário de catástrofe, no entanto, não podemos permitir que concidadãos que caíram na pobreza extrema porque foram levados pela onda pandémica.
O Estado tem de acudir a bancos, empresas estratégicas, mas, em definitivo, tem de acudir aos nossos compatriotas. A sociedade civil tem dado o exemplo, quem viu as tendas de campanha em frente aos hospitais repletas de alimentos doados assim o testemunhou, mas citando Marquês de Pombal após o terramoto de 1755: senhores governantes é tempo de “enterrar os mortos e cuidar dos vivos”.
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Ricardo Carvalho iniciou a sua carreira na área da publicidade, tendo sido convidado aos 23 anos para diretor executivo de uma start-up de new-media. Atualmente é CEO do Grupo Lisbon Project e Business Angel. É especializado em marcas de consumo e institucionais, tendo investido e fundado 10 outras empresas nos setores de publicidade, marketing e tecnologias de informação.
Ao longo da sua carreira trabalhou com clientes como a Presidência da República Portuguesa, Ministério dos Negócios Estrangeiros; Chicco, Citroën, DS Automobiles; Golden Wealth Management; Peugeot ou Kia Motors.
O seu percurso profissional levou-o a desenvolver projetos em diferentes geografias, começando por diversos países da União Europeia, EUA, Médio Oriente e África Austral (SADC). Ricardo Carvalho é finalista do curso de Comunicação, Publicidade e Marketing da Universidade Autónoma de Lisboa.