Despediu-se por incompatibilidade ética e criou empresa de milhões

Sofia Esteves, filha de emigrantes de poucas posses, trabalhou para conseguir estudar. No seu primeiro emprego deram-lhe a antiga casa de banho como escritório. No segundo, um conflito ético fê-la optar por se demitir e por começar o seu próprio negócio de consultoria de RH, hoje com faturação de 8 milhões de euros.
A história de Sofia Esteves não é feita de facilidades ou se quer de valorização do seu esforço, talento e dedicação, bem pelo contrário.
Hoje fundadora de uma das maiores consultoras de recursos humanos do Brasil, Sofia Esteves nasceu numa família de emigrantes europeus no Brasil e cresceu com poucas posses e entre três irmãos. Muitas vezes sem lanche e tendo de andar quilómetros até à escola, Sofia estudou graças ao esforço dos seus pais, que começaram por vender miúdos de carne pelo bairro e mais tarde se estabelecido com um talho no extremo leste de São Paulo.
O primeiro emprego de Sofia foi como rececionista num consultório médico, tinha então 17 anos. Seguiu-se um curso técnico na área de arquitetura, enquanto trabalhava numa loja de móveis perto de casa. Ao entrar na faculdade de psicologia, viu-se perante um dilema. “Precisava ajudar os meus pais a pagarem o curso. Então, continuei a trabalhar nessa loja até o terminar”, contou em entrevista à Exame Brasil.
Terminado o curso, Sofia não tinha feito ainda estágio na sua área de formação. Foi quando uma amiga lhe apresentou uma empresa de consultoria de recursos humanos, um mercado ainda incipiente no país à época.
“Não tinha ideia do que se tratava”, confessou Sofia. Habituada às dificuldades, decidiu avançar quando viu um anúncio de uma vaga numa dessas consultoras no jornal. “Liguei dizendo: ‘olha, tenho 24 anos e um alto potencial. Não querem ajudar-me a começar?’ A rececionista que me atendeu riu e passou para o diretor, que riu também e disse: ‘qual a sua pretensão salarial?’ Eu disse: ‘estou quase pagando para quem me deixar começar’”. Conseguia assim uma entrevista.
Chegada ao escritório, Sofia esperou uma hora e meia além da hora marcada para a entrevista. “Senti-me desrespeitada”, confessou. Quando o diretor finalmente apareceu, começou por dizer: “Olha, acabámos de contratar uma psicóloga formada pela Universidade de São Paulo com cinco anos de experiência”.
Sofia não se deixou ficar e respondeu-lhe: “Que bom que encontraram a pessoa certa. Não tenho mais tempo a perder aqui. Quero trabalhar”. O diretor, então, pensou duas vezes e fez uma proposta. “Olha, já que diz que tem esse talento todo, aceite entrar na empresa como assistente. Mas se não se conseguir desenvolver em três meses vai ser uma ‘assistentezinha’”. O pagamento? Abaixo do salário mínimo na época. O seu espaço de trabalho? Uma velha casa de banho convertida em mini sala.
O sangue de Sofia “ferveu”, mas decidiu ver a proposta como um desafio. “Ele desvalorizou-me. Mas resolvi lutar e mostrar do que era capaz. Em 15 dias já era consultora e, depois de um ano, já me tinha tornado diretora da área e estava a abrir uma unidade de negócios para eles”.
Uma das coisas que distinguiam o seu trabalho, conta, era procurar entregar pessoalmente os currículos que recebia aos seus clientes. “Tentava entender o perfil de cada um, analisar a necessidade da empresa e só enviar os que tinham mais a ver com esse objetivo. Como os correios demoravam algum tempo a entregá-los, ia eu mesma fazer isso e aproveitava para explicar mais sobre os candidatos. O objetivo era tornar o processo mais humano e menos burocrático”, contou a empreendedora.
Sofia continuou na empresa até que resolveu aceitar uma oportunidade profissional numa empresa de “executive search”. Depois de seis meses no novo cargo viu-se perante um dilema ético. “Os diretores queriam que tomasse uma certa atitude em relação a um fornecedor em que a relação não era win-win. Insisti que não o iria fazer, mas o diretor exerceu a sua autoridade. Resolvi pedir a demissão. Aquilo ia contra os meus valores”, contou a empresária.
Desempregada, conheceu uma psicóloga que lhe propôs alugar uma sala na sua clínica. Quase ao mesmo tempo, recebeu um telefonema de um diretor de uma grande empresa, seu cliente quando trabalhava na consultora. “Disse-me que me queria passar um projeto depois de ter descoberto que eu tinha saído da empresa. Rebati: só tenho dois anos de experiência. Acho melhor continuar com a empresa. Ele então disse-me que gostava da maneira como eu pensava a área de recursos humanos e aconselhou-me: ‘abra o seu negócio que vai ter sucesso, menina’”.
Como tudo começou
Sofia pensou que inicialmente trabalharia como freelancer. “Por absoluta necessidade de sobrevivência, aluguei a sala da psicóloga, comprei uma mesa e três cadeiras por cerca de mil reais (cerca de 270 euros) na época, que era o que eu tinha, e aluguei uma máquina de escrever elétrica, pois não conseguia comprar uma. Só fiz isso porque o projeto daria para pagar pelo menos o primeiro mês de aluguer”, contou a empreendedora. Em janeiro de 1988, teve 15 dias para criar uma metodologia própria na qual acreditava, ouvindo diversos profissionais do mercado. Um projeto trouxe outro. “Foi tudo no boca a boca”, confessa a empresária.
Sofia resolveu, então, seguir o conselho do cliente. “Pedi ajuda a mentores sobre como abrir uma empresa e criei a Decision Making, que depois virou a DM”.
Seis meses depois, a empreendedora alugava o seu primeiro escritório e contava com uma pequena equipa de cinco pessoas. A primeira crise surgiu logo a seguir: o congelamento das poupanças, vulgarmente conhecido no Brasil como confisco da poupança, realizado pelo então presidente Fernando Collor.
“Estava com 17 projetos em mãos e 12 deles foram suspensos apenas durante a manhã. Nesse dia as minhas colaboradoras foram almoçar sozinhas. Depois anunciaram que sabiam que provavelmente não teria dinheiro para lhes pagar, mas que queriam continuar na empresa. Mandaram-me dar-lhes férias e pagar apenas os encargos obrigatórios. Quando o mercado retomasse poderia chamá-las de volta. Depois de dois meses, comecei a chamá-las para voltarem ao trabalho”, relembrou a empresária.
O segredo para ter alcançado esse grau de compromisso dos seus colaboradores, confessou Sofia, foi dar-lhes muita autonomia, confiar no trabalho deles e tratá-los sempre como sócios. “Sempre procurei fazer quatro reuniões ao longo do ano, nas quais partilho os resultados da empresa e sua situação real. Não é por acaso que quem esteve comigo no início se tornou, efetivamente, sócio com o tempo. Todos sempre souberam qual era o meu salário e quanto faturava a empresa”.
Com a empresa novamente em marcha, a empreendedora decidiu começar um trabalho voluntário em universidades. “Queria explicar aos jovens os conceitos básicos para orientá-los profissionalmente, como quais eram as diferenças entre uma empresa multinacional e nacional”.
Até que, um dia, recebeu a ligação de um diretor da então Gessy Lever, agora Unilever. “Queriam terceirizar um programa de trainees. Nem sabia do que se tratava, só conhecia programas de estágios. Inicialmente recusei, mas ele insistiu que eu tinha experiência com jovens e como recrutadora e poderia fazê-lo. Nascia uma nova área da empresa, a Cia de Talentos”, contou a empresária.
Esta área do grupo só se tornou lucrativa 13 anos depois. O importante, conta Sofia, era que o grupo fechasse no azul neste período. “Quando a divisão se tornou conhecida até em países vizinhos, percebi que não há dinheiro melhor do que aquele que se coloca no que se acredita”.
O sucesso
Com 200 colaboradores, presença em 40 países e faturação de 31 milhões de reais (cerca de 8 milhões de euros) ao ano passado, a DMRH está prestes a completar 30 anos. No portefólio conta com grandes clientes, inclusive a Unilever, que são fiéis à consultora há quase duas décadas.
Olhando para o caminho percorrido, Sofia conta que nunca parou para pensar muito em empreender e nem percebia os riscos que corria quando estava a montar o negócio. “Por necessidade, ia fazendo, seguindo uma intuição, sempre à procura de fazer bem feito. Acho que faz parte de um perfil: tem muita gente com história similar à minha que, frente a uma dificuldade, para e cristaliza”, partilhou a empresária.
Segundo Sofia, o que fez a diferença foi a visão de mudar o que se praticava na área. “Quando comecei só existiam consultorias internacionais que faziam processos seletivos sempre iguais, que não levavam em consideração os valores, a cultura e o perfil emocional do brasileiro”.
Apesar do crescimento rápido, Sofia conta que este poderia ter sido ainda mais acelerado. Precauções para evitar que o negócio saísse do seu controlo diminuíram o ritmo do crescimento, mas tornaram o negócio mais sólido. Os seus pais tinham sido roubados por sócios e recrutadores mais do que uma vez, pelo que ela nunca assumiu dívidas ou empréstimos sem ter a certeza de que poderia pagar, dando um passo por vez.
A sinceridade com os colaboradores, a humildade de pedir ajuda a profissionais experientes e o facto de pagar sempre atempadamente aos funcionários e fornecedores também foram decisivos no caminho para o sucesso do negócio. “No aluguer do meu primeiro escritório, não tinha como pagar a uma arquiteta. Mas ela disse-me que eu estava a ser tão corajosa que poderia pagar depois. Confiou em mim, pois fui muito transparente”.
O cuidado com os candidatos também marcou sempre o seu negócio. “Quem paga as minhas contas são as empresas que me contratam, os meus clientes, mas sempre lhes expliquei que não poderia colocar os candidatos sem ter qualquer informação. Precisava de informações completas sobre os processos seletivos por que iam passar”, partilhou a empreendedora.
Preocupada em tornar o mercado de trabalho mais acessível, Sofia conta que levou uma década para mudar a mentalidade dos clientes sobre o perfil que pretendiam dos candidatos. “Expliquei que talento não é sinónimo de uma boa escola e não significa ter fluência numa língua estrangeira. Dessa forma, acredito que se criam feudos, com cabeças que pensam sempre da mesma forma. Dava-me como exemplo. Os conhecimentos técnicos podem ser treinados no dia a dia. A alma e os valores não. Dessa forma, consegui criar uma onda de diversidade no quadro de colaboradores das empresas”.
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