Opinião

A verdade da mentira

Mário Ceitil, formador e professor universitário

Vivemos há séculos com a ideia de que a verdade se opõe à mentira e que o fosso que separa estas duas entidades é claro e inequívoco, sendo, portanto, possível, desmontar e denunciar uma mentira através de uma informação rigorosa e supostamente objetiva.

Esta ideia corresponde, de acordo com Yuval Harari, a uma “visão ingénua da informação que “entende que determinado objeto se define como informação no contexto da busca da verdade”. Dito desta forma, “a visão ingénua estabelece que a informação é uma tentativa de representação da realidade e, sendo bem-sucedida, chamamos-lhe verdade” (*).

Apesar de ser uma visão fácil de entender e da sua inegável comodidade cognitiva, assente na ideia de que se uma informação não representa bem a realidade, podemos legitimamente classificá-la como “má informação” ou “desinformação”, trata-se na verdade de uma perspetiva que não “cola” bem com essa realidade mais palpável e concreta que vivemos atualmente, onde, ao contrário do famoso “ser ou não ser”, da célebre frase de Hamlet, na peça homónima de Shakespeare, uma coisa ser verdade ou ser mentira parece hoje já não “ser a questão”.

De facto, e citando novamente Harari, “contrariamente ao afirmado pela visão ingénua, a informação não está fundamentalmente ligada à verdade. (…) A informação ocupa-se, sim, de criar novas realidades”. (*) A esta luz, e se a informação não representa a verdade, então “erros, mentiras, fantasias e ficções também são informação” (*), na medida em que contribuem para criar realidades, mesmo que sejam diferentes e alternativas a outras consideradas como referência.

Embora esta perspetiva seja mais um excelente condimento para fazer aumentar o nosso “mal-estar na civilização”, não há como ignorá-la, num mundo que já inventou o famoso conceito da “pós-verdade”, que descreve uma situação em que os factos objetivos têm menos influência, na formação de opiniões, do que as crenças pessoais, o que leva a que as pessoas tendam a aceitar ou rejeitar informações com base no que reforça as suas visões pré-existentes, em vez de procurarem informações mais factuais.

Com a ascensão do “trumpismo” e as poderosas campanhas de verdadeira “intoxicação informativa” protagonizadas pelas redes sociais dominadas por Elon Musk, entre outros, vemo-nos atualmente talvez no início de uma nova era em que, para além de todas as dificuldades relacionadas com as realidades sociais  anteriormente caracterizadas nos já “velhos acrónimos” de “VUCA e “BANI”, temos de juntar a generalização da mentira, ou, pelo menos, da sua elevada probabilidade, como mais um dos elementos dominantes dos nossos ecossistemas sociais e económicos e também, por maioria de razão, políticos, área, aliás, onde a sua dominância já faz parte dos anais dos milénios de História.

Estaremos então condenados a viver cada vez mais no meio de mentiras, afirmadas impunemente e sem qualquer respeito, pelo contraditório? Estaremos fadados a viver num mundo onde cada vez mais a realidade e a ficção se misturam numa amálgama indecifrável, que é um campo fértil para ser aproveitado por líderes sem escrúpulos e sem quaisquer peias que refreiem os ímpetos primários do seu nepotismo e da sua obscuridade de propósitos?

Alguns, alegando simplesmente que é preciso adaptarmo-nos a um mundo novo, vão “surfar” a onda com entusiasmo e alegar o caos como justificação e contexto para práticas de liderança arbitrárias e autoritárias, que usam a mentira, a mistificação e a manipulação descarada como “competências” requeridas e valorizadas neste novo mundo. Os líderes que assim procederem, serão aqueles que, ainda inspirados pelos velhos slogans de inspiração darwinista, afirmarão, convictos, de que a “vida é uma selva” e serão uns ferozes adeptos de formas de liderança que não olharão a meios para atingirem os fins; fins, obviamente, sobretudo determinados pelas suas idiossincrasias pessoais.

Outros, pelo contrário, irão compreender que, face à instabilidade reinante, o papel dos líderes será cada vez mais importante no estabelecimento de redes intersubjetivas com as suas equipas e os seus colaboradores, através da geração de propósitos integrados, de forma a estabelecerem entre si laços perenes baseados na intransigente busca de benefícios percebidos e partilhados por todos.

Estes líderes, conscientes de que a função primordial da informação é “criar novas realidades” (*), procurarão gerar, com as suas equipas, uma rede de significados, onde o sentido de pertença, assumido voluntariamente, se torna num poderoso antídoto contra possíveis desconexões de valores que, a acontecer, minam o clima interno e conduzem a diferentes formas de desmotivação.

A principal função da informação, já se disse anteriormente, não é representar uma realidade algures existente; é ligar as pessoas em torno de uma realidade alternativa. E se, como saliente Harari, “o registo mais fiel da realidade não a representa plenamente”, porque “qualquer representação descuida ou distorce aspetos daquilo que é representado” (*), compete a cada líder gerar, com as suas equipas, uma “narrativa” estável que, embora sempre atenta à máxima informação objetiva e factual que se puder obter, possa recriar um sentido de realidade coerente e que apresente alguma estabilidade, face a um ambiente externo cada vez mais caótico e desregulado.

Não estaremos, é óbvio, livres dos desmandos e desvarios de líderes sem escrúpulos nem caráter. Pelo contrário, as inevitáveis limitações da nossa capacidade de representação da realidade, dão azo a todo o tipo de mistificações na interpretação da realidade, como acontece com os líderes populistas que “defendem que a verdade objetiva não existe e que cada um de nós tem a “sua verdade” que usa” para os fins que achar por convenientes” (*).

A diferença é que, na visão destes líderes, “há tão-só uma realidade: o poder (…) e que aqueles que detêm o poder jamais terão interesse na verdade” e, por isso, “não devemos esperar que reconheçam os seus erros e os corrijam” (*).

Estranha situação esta em que o nosso mundo está: tanto gera líderes inspiradores e multiplicadores, que conseguem fazer despertar a genialidade dos seus colaboradores e equipas, como catapulta para as luminárias do poder líderes corruptos que, à custa de manipulações descaradas dos processos de comunicação e de informação, reduzem massas de seres humanos à categoria de inconsequentes acólitos de narrativas confabuladas que estimulam e apelam ao pior que existe em cada pessoa.

Dir-se-á que sempre assim foi; que em toda a História da humanidade sempre houve líderes que agiram seja num sentido, seja no seu oposto. A diferença, subtil, mas extremamente importante, é que atualmente assistimos e somos protagonistas de uma progressiva erosão dos referenciais que nos permitam, como alguma segurança, distinguir o que é bom do que é mau, o que é verdade do que o não é e do que é autêntico do que é confabulado e fantasioso.

Por isso, resta-nos o retorno, ou a reafirmação, daquilo que é o reduto do mais profundo e mais autêntico em cada líder e, finalmente, em cada um de nós: inequivocamente, imperativamente e inegavelmente…o caráter: esse que é o fim último da ontogénese moral de todo o ser humano.

Referências:
Todas as referências deste texto são extraídas de HARARIA, Y.N. (2024). Nexus – História Breve das Redes de Informação: Da Idade da Pedra à Inteligência Artificial. Lisboa: Elsinore

Comentários
Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

Artigos Relacionados