Opinião
A montanha, os desafios e as lições de humildade
Acabada de chegar das montanhas do Equador, sinto-me obrigada a partilhar o que por lá vivi … e aprendi. No ano passado escrevi sobre a subida ao cume do Kilimanjaro. Não bem sobre a subida, mas sobre o extraordinário líder que com ele levou 27 pessoas até ao cume mais alto de África, numa subida inesquecível.
Porque a subida foi, para mim, um desafio fácil de superar, fui vítima da miopia que nos caracteriza e vi a realidade apenas pelos meus olhos.
Dormir numa tenda rudimentar;
Não haver água para tomar banho dias a fio;
Ter as unhas pretas e o cabelo não lavado;
Comer o que me era apresentado sem escolha;
Subir de 1900m para 5985m em cinco dias;
Respirar e funcionar nestas altitudes;
Não dormir na noite da subida ao cume;
Escalar pedras no final da subida;
Suportar temperaturas negativas.
…
Acreditem, tudo isto se passou sem me causar grande incómodo, sem ter de recorrer a força mental para não desistir, não sentindo nunca cansaço extremo ou dificuldades de maior.
Foi fácil mesmo!
Foram dias sublimes, de imersão numa viagem a serpentear no caminho para um objetivo – o cume do Kilimanjaro – que vivi centrada em mim mesma, sem ter de tomar nenhum tipo de decisão e não tendo nada para fazer a não ser seguir as instruções que me chegavam.
Que terminaram com uma vontade irresistível de regressar à montanha, aqui ou em qualquer outro lugar…
Mas, porque me foi fácil, não despertou em mim nenhum tipo de sentimento de pequenez ou humildade… antes pelo contrário, vim com um sentimento de conquista fácil e de alguma, confesso, invencibilidade.
Este ano regressei.
Com o mesmo grande líder e uma parte do grupo do ano passado a que se juntaram alguns (tão fantásticos como os do grupo do Kilimanjaro) novos elementos.
Uma aventura diferente – no Equador íamos fazer alguns cumes de preparação e aprendizagem para a subida final ao cume do Cotopaxi, onde a técnica exigida é mais apurada pela existência de parte do percurso feito em gelo.
Num entusiasmo prévio talvez ainda maior que o do Kilimanjaro, por já ter experimentado e saber o quanto gostava.
Só que desta vez a montanha não me deixou continuar iludida.
E demonstrou, como e quando quis, que as forças da natureza são maiores que a nossa vontade, a nossa forma física, a nossa preparação, o nosso ânimo … e despertou-me para a insignificância do que achava era a minha invencibilidade!
Desafio 1
Aceitar que os planos, por muito bons que sejam, podem ter de mudar.
Começou com atividade vulcânica no Cotopaxi e encerramento das rotas de subida.
Mudaram-se agulhas para o Cayambe, montanha menos conhecida, mas nem por isso menos desafiante.
Mas na véspera da partida, já no Equador, obras no acesso ao Cayambe implicavam uma logística quase impossível de realizar para que 21 pessoas lá chegassem em condições para o desafio que os esperava.
Mais uma mudança, mais uma aceitação de alteração, mais uma adaptação… para picos mais baixos e menos exigentes, mas que estavam disponíveis para nos acolher.
A montanha e as suas forças a sobreporem-se á nossa vontade e a obrigarem-nos a reconhecer a nossa pequenez e a sua grandeza!
Desafio 2
A força que falta.
De tudo o que íamos fazer, um cume atraia-me mais do que todos – o Illiniza, onde o final da subida se faz escalando rochas (que eu adoro e presunçosamente acho que faço sem dificuldade!).
Subida até ao refúgio, descanso até às 4h da manhã, despertar para sair às 5h.… e de repente vejo-me, sem saber porquê, tão sem forças que nem tentei começar a subida e nem me custou tomar a decisão.
A inanição era total.
Difícil, muito difícil, foi depois, quando acordei de novo às 8h, perceber que todos tinha ido e eu tinha ficado. Que esse cume tão desejado estava fora do meu alcance. Que não havia volta a dar, já não o podia fazer.
Pior ainda, umas horas depois, assistir à chegada de todos os que tinham superado o desafio, de brilho nos olhos e sorriso no rosto! Perceber, pela primeira vez na vida, que a alegria dos outros pode causar dor… uma dor tão grande, que naquele momento me parecia impossível de superar, um desespero pelo que podia, mas não tinha feito que me engoliu totalmente.
Uma vez mais foi o JVA que me salvou. Nem sei se ele sabe o quanto o abraço e o “há mais cumes, este não tinha de ser hoje”, que me disse ao almoço nesse dia me ajudaram a seguir em frente e a ser capaz de apagar o desgosto e a aproveitar o resto do programa.
Desafio 3
Afinal não é assim tao fácil.
No Kilimanjaro foi fácil
Estava em boa forma física, coração, pulmão e pernas a funcionar a 100%, reação à altitude (graças ao indispensável Carbinib) quase nula… e lá fui eu sem nunca ter de pensar em esforço.
Pois foi, muito bom!
Mas quis o destino que desta vez uma sinusite forte me obrigasse a viver o Equador entre tosse e nariz permanentemente tapado, e a perceber que subir até custa…!
Afinal não sou assim tão forte como acreditava, e bastou uma sinusite para que tudo se tornasse difícil e o esforço estivesse presente todo o tempo.
Grande lição de humildade!
Desafio 4
Partilha de espaço.
Odeio dormir com mais alguém no meu quarto. Gosto do meu espaço só para mim e da minha privacidade.
De tal forma que no Kilimanjaro (em que a minha filha fez a subida no mesmo grupo) fiquei sozinha numa tenda a deliciar-me com a minha solidão!
Quis o número de quartos no Tambopaxi (maravilhoso hotel onde ficamos instalados, de frente para o Cotopaxi e os seus vulcânicos vapores) me obrigasse a aceitar dividir o quarto com outra pessoa.
Foi quase motivo para não ir, mas a ideia de perder as montanhas lá me levou a engolir este sapo e a aceitar que teria de partilhar o meu espaço.
Obrigada RBB pela forma como me ajudaste a superar mais este desafio.
Graças à tua forma elegante de estar e aceitar, não foi nada difícil a partilha.
Mas fui obrigada a aceitar que tinha de ser assim e que nem sempre o que queremos pode acontecer!
E pronto.
Voltei com um bicho de montanha ainda maior, com ainda mais vontade de repetir subidas e escalar cumes, e com uma dose acrescida de humildade que tão bem me faz!
Obrigada a todos os companheiros de aventura e amigos para a vida, pela forma plena como vivemos estes dias.
Obrigada, uma vez mais, ao JVA por me ter contagiado com o bicho da montanha, pela capacidade que tem de nos levar, de nos motivar, de nos encorajar, de nos desafiar… e de mandar em nós quando precisamos.
E obrigado à Pacha Mama por todos os desafios que me obrigou a superar e que acredito fizeram de mim uma pessoa melhor!