Entrevista/ “Toda a economia vai ser digital”

Carlos López Blanco, especialista em regulação e economia digital

“De uma ou outra maneira tudo vai digitalizar-se e o que não se digitalizar vai desaparecer”, afirmou ao Link To Leaders Carlos López Blanco, especialista espanhol em regulação e economia digital. Numa entrevista em que aborda o processo de transformação da economia tradicional em economia digital, este especialista destaca ainda o papel fundamental da Europa na liderança da regulação do mundo digital.

Especialista em regulação e economia digital, o espanhol Carlos López Blanco esteve recentemente envolvido na 3.ª edição do Foro La Toja – O vínculo Atlântico realizado no início de outubro, em Pontevedra, Espanha, onde se reuniram líderes ibéricos de vários setores de atividade para discutir temas da atualidade.

Ligado há mais de 30 anos ao setor economia digital, Carlos López Blanco é presidente da Comissão de Economia Digital da Câmara de Comércio Internacional, senior adviser da Flint Global, membro do conselho consultivo da Telefónica Espanha, entre outras experiências profissionais, da advocacia à política. Em entrevista ao Link To Leaders, analisou o estado da economia digital na Europa e os desafios da regulação.

Muitos especialistas dizem que a Europa ainda vive a duas velocidades naquilo que é a economia digital.  Na sua opinião, isto é realmente uma realidade?
Não posso responder a essa pergunta sem antes falar do tema da digitalização que é global. Falar de divisões entre países sem ter em conta o marco global é muito difícil. Creio que é relevante entender qual o papel que está a jogar a Europa no processo de digitalização. E para isso há que entender em primeiro lugar que a Europa tem vivido nos últimos anos a síndrome do “comboio perdido”. E explico: há esta ideia que ficou arreigada de que na Europa não havia uma empresa como a Google, por exemplo.

Durante muitos anos, a Europa viveu com a sensação de que não podia ser um jogador relevante no mundo digital. Que estava condenada a ser no século 21 uma região irrelevante, baseada numa economia tradicional e sem ser um jogador importante no mundo digital.

O grande diagnóstico dos EUA sobre o papel da Europa no mundo digital era esse: a Europa perdeu esse comboio, não foi capaz de entender o século 21, não foi capaz de ter empresas como a Google, não tem empresas com liderança em computação. Creio que este diagnóstico parte do facto de não entenderem bem o que é a economia digital e a digitalização.

Nesta discussão a Europa há uns anos tomou uma decisão: o papel da Europa no mundo digital vai ser o de estabelecer as regras do jogo. Porque os EUA não querem fixar as regras do jogo, porque lhes interessa um mundo digital sem regras porque têm as grandes empresas, porque têm a liderança. Não têm grande interesse em que haja regras.

A Europa chegou à conclusão de que alguém tinha de estabelecer regras no mundo digital. E aí há um primeiro item que foi surpreendentemente bem-sucedido: o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD). Então a Europa, e creio que com consciência do efeito que poderia ter, decide ser a região do mundo onde há a regulação de um aspeto tão importante para o mundo digital como os dados.

Há um processo que foi muito importante: surpreendentemente a regulação europeia converteu-se num standard global. Com clientes na Europa, as empresas dos EUA não podem descurar este aspeto. Então de repente a Europa descobre que estabelecer a regulamentação no mundo da internet não só é importante para a Europa como também joga um papel global. Descobre a sua vocação e quando acaba o RGPD a Europa embarca em toda a regulamentação do mundo digital que, neste momento, está em discussão, e que vai ter uma importância extraordinária porque vai ser a primeira vez que alguém trata de regular as plataformas da internet, as grandes plataformas. Isto sobre uma política de concorrência muito agressiva. Este processo teve o seu primeiro grande lançamento no RGPD e agora com esta nova regulação. Mas até agora a Europa tinha um deficit de legitimidade.

Quer explicar?
Os Estados Unidos acusavam a Europa de usar as regras para compensar o seu atraso no mundo digital. Ou seja, é o mesmo que dizer “vocês põem muito limites a empresas como Google, Facebook, Apple, etc, a todas as empresas digitais americanas porque como não têm empresas utilizam a regulação e a política de concorrência como arma competitiva”. Esta foi uma posição dos Estados Unidos face à Europa.

E o que está a acontecer agora? Os EUA estão a fazer coisas muito parecidas com as empresas de internet e estão a abrir investigações como as que tem a Europa com o Google ou com o Facebook. Mas o mais surpreendente, porque ninguém o esperava, o governo chinês está a fazer o mesmo. Isto de repente reforçou muito o papel da Europa. Dá-lhe outra vez muita legitimidade. Agora a pergunta que creio que devemos fazer é se no mundo digital do século 21 é suficiente ser aquele que fixa as regras ou não.

“(…) Europa durante muito tempo não vai ser líder em inteligência artificial, mas sim, pode ser a região do mundo, e as suas empresas, que melhor faz a transformação digital”.

E é suficiente?
Eu creio que a resposta é não. Creio que se a Europa quiser ser o grande “role center” do mundo digital não é suficiente. E aqui entram os pessimistas que dizem que se não é suficiente ser “role center” então estamos mortos, porque a Europa nunca poderá competir com a China e com os Estados Unidos em inteligência artificial, em computação quântica, em investigação digital. Isso é certo. Mas este é outra vez um mau diagnóstico porque a digitalização é muito mais que isso. A digitalização tem duas partes, uma que é a da investigação acelerada, a super inovação, etc. Mas há outra parte que é o processo de transformação da sociedade, da economia e das empresas. Uma parte muito importante é como digitalizamos as nossas sociedades, como digitalizamos a nossa economia, as empresas tradicionais, como digitalizamos as PME e aí a Europa não está mal.

Quando se pergunta “a Europa vai ser líder em inteligência artificial nos próximos 50 anos? Não! Agora se perguntarmos “e na transformação digital, que tal o estão a fazer as empresas europeias?” De repente procuro exemplos e como está a indústria europeia de automóveis e está melhor que a indústria americana.  Comparando as empresas, sobretudo as alemãs de automóveis, estão a digitalizar muito melhor que as americanas. Se formos ao setor dos bancos, quem está a digitalizar melhor? Os bancos europeus. E quais são as empresas energéticas que melhor estão a entender os desafios do século 21 com a digitalização? As empresas europeias.

Então se mudarmos a perspetiva, a Europa durante muito tempo não vai ser líder em inteligência artificial, mas sim, pode ser a região do mundo, e as suas empresas, que melhor faz a transformação digital. Esse é, do meu ponto de vista, o grande desafio político neste momento na Europa.

Este creio que é uma boa parte do diagnóstico da União Europeia, o diagnóstico dos grandes grupos empresariais. Mas a Europa normalmente é muito boa a fazer diagnósticos, muito boa a desenhar as políticas e muito má a executar. Porque normalmente na Europa, sobretudo em inteligência artificial, há uma brecha entre as ambições e os recursos. A Europa diz que quer ser líder em inteligência artificial, mas o dinheiro que está disposta a gastar é uma décima parte do que gasta os Estados Unidos.

Mas, pela primeira vez, esse esforço de digitalização da economia europeia por razões estranhas que são a pandemia foi acompanhado pelo maior volume de recursos públicos que temos visto. Portanto, neste momento, creio que a Europa tem uma boa estratégia do ponto de vista digital. Que não a levará a ser líder em inteligência artificial, mas que lhe permite, por um lado, ser quem fixa as regras, e isso é muito importante. E, por outro lado, a ser a economia do mundo que melhor fez a sua transformação digital.

E na Europa quem está a fazer melhor essa transformação?
Tem tudo a ver com a história e com a estrutura dos países. Os desafios da digitalização não são os mesmos na Alemanha que tem estruturas onde as empresas são muito maiores do que em Portugal, Espanha ou Itália, onde o tecido produtivo nacional é formado por empresas pequenas. Os desafios são muito diferentes. É muito mais fácil no Norte da Europa fazer este processo de digitalização do que no Sul.

Dito isto, há países, e Espanha e Portugal são um exemplo, Portugal melhor que Espanha, que souberam entender muito bem alguns conceitos base. Passo a explicar. Há um conceito que Espanha e Portugal entenderam muito bem que é a importância de ter redes de última geração. Na campanha eleitoral alemã, um dos grandes debates era que as redes de banda larga alemã são muito más. Isso não se coloca em Portugal nem em Espanha.

Portanto, esta ideia de que para os países do Sul, pela sua estrutura, é mais difícil esse processo de digitalização do que nos países do Norte, que têm estruturas menos fragmentadas, é o contrário. Os países do sul contam com uma boa infraestrutura que é indispensável, especialmente se se tem muitas empresas pequenas.

Neste contexto, julgo que tanto para Portugal como para Espanha os fundos de recuperação são a grande oportunidade de acelerar esse processo. E para que o gap que há entre os países do Norte e do Sul em matéria de digitalização termine. Existe um gap que não tem tanto a ver com o avanço da tecnologia ou com as redes, mas como as empresas aproveitam as potencialidades da digitalização. É mais difícil se fores uma empresa de 10 do que de 500 pessoas. No fundo, este processo de digitalização tem que ver com a estrutura da tua economia, porque o desafio para a Europa, insisto, não é ser o líder em computação quântica. O desafio está em digitalizar-se bem e isso tem tudo a ver com a realidade económica de cada indústria, de tudo.

Há duas situações especiais: dos países bálticos, que são uma situação rara, pela positiva, mas claro são muito pequenos. E logo os antigos países de Leste que são contraditórios quanto ao desenvolvimento. Mas quando se olha para a Alemanha, França ou Itália não o estão a fazer muito melhor que Espanha ou Portugal. Claro que tem estruturas económicas que lhes tornam mais fácil o processo.

E são esses países que estão a definir as regras do jogo neste momento, nesse processo?
Não. Creio que quanto às regras do jogo há um grande consenso na Europa. Neste momento, há uma certa unanimidade, ou pelo menos uma opinião bastante firme, para onde caminha a regulação das plataformas digitais que vai ter uma importância transcendental para o futuro.

“(…) o que a União Europeia está a fazer é mais do que regular a economia digital. Está a regular a economia do futuro”.

Porquê?
Porque quando se diz “estou a regular a economia digital”, estou a regular a economia. Porque toda economia vai ser digital. Porque estamos a regular as plataformas digitais que são uma parte da economia. Dentro de 20 anos toda a economia vai estar a usar, de uma ou outra maneira, as plataformas. Na realidade, o que a União Europeia está a fazer é mais do que regular a economia digital. Está a regular a economia do futuro. É uma regulação complexa, difícil. Esse é para mim o risco grave que estamos a correr.

“Necessitamos de regras porque, mais tarde ou mais cedo, essa nova economia vai ocupar o lugar da economia tradicional (…)”.

Mas essa regulação é fundamental senão entra-se no caos…
Totalmente. E creio que já o entenderam. Inclusivamente os americanos. Quando o mundo digital nasce nos Estados Unidos, todo o mundo dizia que havia uma visão um pouco ingénua da economia digital, da sociedade digital. A questão da economia digital é a sociedade perfeita porque na economia digital não se pode pôr barreiras, não se pode por limitações à concorrência, não se pode prejudicar a liberdade de expressão e onde qualquer empresário, por mais pequeno que seja, pode destronar uma grande empresa. Este é todo o substrato cultural da economia digital nos Estados Unidos. A Europa perante isso disse não.

Necessitamos de regras porque, mais tarde ou mais cedo, essa nova economia vai ocupar o lugar da economia tradicional e, portanto, tal como a economia tradicional tem regras, esta economia também tem que tê-las. Este é o processo de digitalização. Portanto, algumas regras tem de ter. Neste contexto creio que há uma opinião geral, que ninguém discute, de que o mundo digital também o necessita. Por essa ideia de que no final o que se está a regular já não é a economia digital. É a economia. Porque de uma ou outra maneira tudo vai digitalizar-se e o que não se digitalizar vai desaparecer.

Algum país na Europa que esteja a surpreender pela positiva? Pela inovação?
Todos os países escandinavos e os bálticos. Os países bálticos já entenderam muito bem o que é a digitalização, essa ideia de tornar tudo digital. Pelo seu pequeno tamanho não podiam fazer outra coisa e fizeram-no muito bem. Tiveram sorte. Quando és um país que tem de construir tudo do zero é mais fácil. Não tens heranças, podes saltar etapas.

Creio que a Alemanha também tem reagido bem aos seus desafios principais. E por isso focaram-se em defender a sua capacidade industrial e estão a fazê-lo muito bem na digitalização. Mas, pelo contrário, creio que não entendeu muito bem como aproveitar todo as possibilidades sociais da digitalização.

A França vive num paradoxo muito grande. É o país que mais dinheiro e melhor gasta na investigação e desenvolvimento. Tem institutos de investigação tecnológica e científica maravilhosos, mas não é o país mais inovador. Não é capaz de converter essa investigação, esse desenvolvimento tecnológico, em inovação. Não é capaz de o levar às empresas, à sociedade. Esta é uma grande lição para aprendermos

Falou de grandes e médias empresas, de inovação… qual pode ser papel do ecossistema de start-ups em todo este processo de economia digital?
Há um problema com as start-ups muito importante, que não está resolvido, que é o financiamento. Na Europa os mercados estão muito fragmentados. Nos Estados Unidos toda agente vai a Silicon Valley e sabe que ali está todo o dinheiro. Pelo contrário, na Europa se és uma start-up onde vais buscar o dinheiro? A Espanha, a França, Itália… Esse é para mim o único problema.

“(…) qualquer empresa, por mais pequena que seja, pode digitalizar-se. E o importante é que lhe abre novos mercados, novas cadeias de comercialização”.

Qual é o desafio para as economias europeias?
É como digitalizar as empresas pequenas. Como fazer com que empresas que têm 10, 12, 15, 20 empregados se digitalizem. Isso é muito importante. O grande desafio é: como faço com que as empresas ganhem tamanho. E aqui a digitalização é uma questão fundamental, porque qualquer empresa, por mais pequena que seja, pode digitalizar-se. E o importante é que lhe abre novos mercados, novas cadeias de comercialização. Abre-lhe o mundo que antes o seu tamanho não deixava. Uma empresa de 10 empregados não podia sair de Lisboa, não podia sair de Madrid. Agora sim. Essa é a mais-valia da digitalização. A digitalização vista como oportunidade na Europa. Há que vê-la como a capacidade das empresas europeias aproveitarem as vantagens que supõe a digitalização.

Comentários

Artigos Relacionados