Opinião

Rumo à distopia social

Ricardo Monteiro, comentador de política internacional e economia

A história da humanidade tem sido marcada por ciclos de poder, desigualdade, inovação e colapso. Do apogeu dos impérios clássicos ao advento das revoluções industriais, sempre houve momentos em que o progresso tecnológico e económico foi acompanhado por profundas assimetrias sociais.

Mas nunca como agora parece tão plausível que estejamos a caminhar deliberadamente para uma distopia social — uma sociedade não apenas desigual, mas fragmentada, com regras diferentes para cada camada social, até ao ponto em que os destinos coletivos deixam de se cruzar.

Nos últimos anos, assistimos a sinais perturbadores: um mundo onde indivíduos acumulam fortunas de dimensões inimagináveis, onde líderes autocratas discutem não apenas como manter o poder, mas como transcender a própria condição humana, e onde a noção de classe média — que durante décadas funcionou como amortecedor de estabilidade política e social — se vai desintegrando. Este ensaio procura analisar alguns dos vetores mais significativos desse rumo distópico: o caso do bónus trilionário de Elon Musk, as conversas de Putin e Xi Jinping sobre a vida eterna, a explosão das desigualdades, os abrigos auto-sustentáveis dos super-ricos e a transformação radical dos mercados em função dos desejos de um punhado de indivíduos de altíssimo património.

  1. Elon Musk e o bónus de um trilião

O episódio da atribuição de um bónus de um trilião de dólares a Elon Musk — ainda que parte projeção, parte realidade futura — simboliza o ponto a que chegámos (1). Nunca, em toda a história humana, um indivíduo concentrou tal volume de riqueza líquida. É uma soma que excede o PIB anual de quase todas as nações do planeta. Não se trata apenas de um número, mas de um sinal político e cultural: o mercado financeiro, na sua lógica de recompensas, considera legítimo transferir tamanha riqueza para um só homem, sem consideração pelas consequências sociais ou éticas.

Um bónus dessa escala, concedido num mundo onde centenas de milhões ainda lutam pela sobrevivência, torna-se um gesto quase obsceno, que naturaliza a desigualdade extrema como parte integrante da modernidade. Mais grave: a concentração de recursos neste nível altera a própria natureza da democracia e da economia. Com um trilião de dólares, Musk pode não apenas comprar empresas e tecnologias, mas condicionar eleições, moldar a regulação internacional do espaço, definir os rumos da inteligência artificial, da biotecnologia e até da comunicação global. O capital privado torna-se poder político absoluto, sem necessidade de legitimação democrática.

  1. Putin, Xi e a vida eterna

Enquanto isso, noutro plano da cena global, circulam relatos de conversas entre Vladimir Putin e Xi Jinping (2) sobre o sonho de alcançar a vida eterna, captadas por um microfone aberto sem que os protagonistas se dessem conta de que a sua conversa poderia ser escutada. Não é ficção científica: investigações avançadas em biotecnologia, criogenia, edição genética e interface homem-máquina estão em curso, muitas vezes financiadas por fundos estatais e por oligarquias próximas do poder.

O que está em causa não é apenas a obsessão humana com a imortalidade, mas o facto de líderes autoritários, já dotados de um poder quase ilimitado, vislumbrarem a possibilidade de o perpetuar biologicamente. Um ditador com vida prolongada indefinidamente seria uma catástrofe política: regimes que dependiam do desgaste natural dos seus líderes para abrir brechas de mudança tornar-se-iam permanentes.

Além disso, se a biotecnologia da longevidade se tornar acessível apenas aos muito ricos e poderosos, estaremos perante a institucionalização da desigualdade mais radical de todas: a desigualdade do tempo de vida. Uns continuariam a envelhecer e morrer; outros prolongariam as suas existências indefinidamente, acumulando poder e recursos por séculos. Uma aristocracia biológica substituiria de vez a mobilidade social.

  1. A desigualdade extrema: um retrato global

Em paralelo, cresce a desigualdade em quase todas as latitudes (3). Mesmo em países desenvolvidos — Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha — a distância entre os mais ricos e os mais pobres atinge níveis comparáveis aos do século XIX. A globalização prometera prosperidade partilhada, mas o efeito foi o inverso: uma elite global de ultrarricos capturou os ganhos da inovação tecnológica, enquanto grande parte da população se depara com estagnação salarial, precariedade laboral e fragilidade nos sistemas públicos de saúde e educação.

Nos países em desenvolvimento, a situação é ainda mais dramática: cidades inteiras organizam-se como mosaicos de riqueza obscena rodeada por favelas e bairros degradados. A promessa de mobilidade social esvanece-se, substituída pela resignação ou pela revolta intermitente.

  1. Os abrigos auto-sustentáveis dos super-ricos

Face ao agravamento da instabilidade — guerras, pandemias, crises climáticas — os ultrarricos já não apostam na solução coletiva. O que se observa é a proliferação de bunkers de luxo, estruturas auto-sustentáveis capazes de albergar famílias inteiras durante anos (4). No interior da Nova Zelândia, no Texas ou em ilhas privadas, multiplicam-se estes refúgios equipados com sistemas de purificação de ar, estufas agrícolas, geradores de energia renovável, reservas de água e segurança privada armada. O objetivo é claro: isolar-se do colapso social iminente, em vez de contribuir para o evitar. Estes abrigos simbolizam a ruptura definitiva do contrato social: os mais ricos já não veem a necessidade de investir na estabilidade das sociedades em que vivem. Preparam-se para sobreviver sem os outros, assumindo que o futuro será feito de enclaves fortificados rodeados de caos.

  1. O desaparecimento da classe média

Mas talvez a transformação mais profunda seja a erosão, talvez mesmo o desparecimento da classe média (5). Durante o século XX, especialmente no pós-guerra, a classe média consolidou-se como pilar da democracia liberal: consumidores com rendimentos estáveis, acesso à educação, habitação própria, férias anuais. Era essa massa que dava escala aos mercados, onde nasceu o seu estudo, o marketing, e que justificava a existência de hotéis de 50 quartos, restaurantes de 200 lugares, cadeias de supermercados acessíveis.

Hoje, esse modelo implode. O que cresce é uma polarização: de um lado, uma elite de altíssimo património; do outro, massas precarizadas. Os mercados já não precisam de volume: precisam de atender às excentricidades de uns poucos. Em Portugal, isso vê-se na oferta quase ilimitada de habitação por valor de milhões de euros a unidade e a sua quase total escassez a níveis mais baixos de preço, não há apartamentos a 150.000 euros em Lisboa ou na Linha de Cascais. Mas há dezenas e dezenas acima de 1,5 milhões de euros. O fenómeno agrava-se em Nova Iorque ou em Londres.

  1. A nova lógica do mercado: do volume à exclusividade

O que está a emergir é um capitalismo do capricho individual. Se no passado os mercados cresciam em escala — quanto mais clientes, melhor — hoje a equação inverte-se. Não importa ter cem mil clientes de classe média; importa ter um único cliente com poder de compra quase ilimitado. Essa mudança destrói a lógica da inclusão económica: já não se procura ampliar a base de consumo, mas satisfazer micro-universos de riqueza absoluta.

Isso explica a proliferação de serviços hiperexclusivos: aviões privados personalizados, ilhas artificiais, praias privadas, roupas feitas à medida com tecidos produzidos para um só comprador. O luxo deixa de ser apenas status: torna-se o mercado em si, absorvendo talento, recursos e inovação que antes se destinariam a satisfazer populações inteiras.

Um hotel para uma só pessoa será viável se houver alguém com meios financeiros disposto a dispender o que antes requeria a despesa combinada de 50 hóspedes (6). Um restaurante de uma só mesa, pela mesma lógica, transformar-se-á no símbolo último de acesso a iguarias de chef. Bastará a admiração de um punhado de ultraricos para garantir a sua prosperidade. O mesmo vale para escolas, hospitais, clubes, qualquer atividade humana antes dirigida a muitos. O luxo supremo será ouvir o tenor do momento numa ópera com um só espectador.

  1. Consequências políticas e sociais

O caminho para a distopia social não é apenas económico. Tem implicações políticas diretas: 1 – Fragilização da democracia: Sem classe média, a democracia perde a sua base social. Os pobres tornam-se excluídos do processo político, enquanto os ricos moldam a legislação de acordo com os seus interesses. 2 – Normalização da desigualdade: A diferença entre ricos e pobres deixa de ser vista como problema a resolver e passa a ser aceite como inevitável. 3 – Fragmentação cultural: As sociedades deixam de partilhar referências comuns; os mundos vividos pelos ricos e pelos pobres tornam-se incomunicáveis. 4 – Risco de violência: A história mostra que desigualdades extremas tendem a gerar revoltas, revoluções ou regimes autoritários que exploram a frustração das massas. (7)

  1. O fascínio pela distopia

Curiosamente, estas tendências são acompanhadas por um fascínio cultural pela distopia (8). Séries, filmes e romances exploram cenários de desigualdade radical, inteligência artificial descontrolada, elites isoladas em paraísos tecnológicos enquanto a maioria sobrevive em ruínas. A ficção tornou-se quase profecia. O que antes era advertência é agora inspiração para alguns dos que moldam o futuro. Elon Musk fala em colonizar Marte como alternativa a um planeta Terra degradado, não como plano coletivo, mas como arca de salvação para poucos.

  1. O que resta da esperança?

Ainda assim, não se pode ignorar que a história não é linear. A própria consciência crescente destas desigualdades pode gerar reações: choques externos, movimentos sociais, revoltas políticas (9), regulação internacional das grandes fortunas, políticas fiscais mais agressivas, sistemas universais de saúde e educação fortalecidos. Mas a janela de oportunidade é estreita. Por enquanto, assiste-se apenas a um aprofundar de todas as tendências de desintegração social e política, não o contrário.

Quanto mais os ultrarricos se isolam — física e socialmente —, menos interesse terão em apoiar reformas coletivas. E se um dia conseguirem prolongar indefinidamente a sua vida, ou viver em enclaves totalmente autónomos, a pressão social pode já não ter eficácia. 

  1. Conclusão: rumo à distopia social 

Estamos, portanto, perante um cenário onde os sinais convergem: um empresário com bónus trilionário, ditadores a sonhar com a eternidade, desigualdades crescentes, abrigos de luxo para sobreviver ao colapso, mercados moldados ao desejo de uns poucos. O que está em jogo é o próprio conceito de sociedade.

Uma sociedade é um contrato implícito de interdependência: todos precisam de todos. Tanto no Ocidente, com os acontecimentos políticos recentes na América e o exemplo de Musk, como nos países ditos do Sul Global, com a tentativa de “eternização” dos seus dirigentes, o que vemos hoje é a sua desintegração. Se o futuro pertence apenas a uns poucos imortais cercados em fortalezas de luxo, então o que resta não é sociedade — é distopia.

Notas

  1. Isaacson, W. (2023). Elon Musk. New York: Simon & Schuster. Ver também: Financial Times (2024). “Musk’s $1 trillion pay deal sets new record”.
  1. Harari, Y. N. (2017). Homo Deus: A Brief History of Tomorrow. London: Vintage. Relatos recentes sobre iniciativas chinesas e russas em biotecnologia surgem em: The Economist (2023). “The immortality projects of autocrats”.
  1. Piketty, T. (2019). Capital et Idéologie. Paris: Seuil. Ver também: OECD (2022). Income Inequality Update.
  1. Osnos, E. (2017). “Doomsday Prep for the Super-Rich”. The New Yorker.
  1. Milanovi■, B. (2016). Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization. Harvard University Press.
  1. Zuboff, S. (2019). The Age of Surveillance Capitalism. New York: PublicAffairs.
  1. Acemoglu, D., & Robinson, J. (2012). Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty. Crown Business.
  1. Jameson, F. (2005). Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. Verso.
  1. Stiglitz, J. (2019). People, Power, and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent. W. W. Norton & Company
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Ricardo Monteiro

Ricardo Monteiro

Ricardo Monteiro é ex-presidente global da Havas Worldwide e ex-chairman global da Havas Worldwide,empresa de marketing e publicidade com presença em mais de 70 países e líder em Portugal. É speaker internacional, comentador de política internacional e economia na CNN e professor convidado da Porto Business School. Foi administrador não-executivo na Sonae MC, e special advisor no jornal Público entre 2018 e 2022. Ricardo Monteiro é casado com Leonor Jesus Correia, pai de quatro filhos e cinco vezes avô. Os... Ler Mais..

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