Opinião
Vamos votar como em 1820?
O progresso tecnológico é sempre algo a ser gerido de modo a permitir que todos os seus intervenientes façam uma correta adaptação e se preparem para os seus potenciais impactos. Depois, temos somente aquelas zonas cinzentas, estagnadas no tempo e sobre as quais apenas pretendemos tomar posições caso outros – “os outros“ – o testem primeiro.
Falo aqui da sobejamente conhecida votação eletrónica, já adotada por inúmeras instituições dentro da sua matriz normativa, mas que tem ficado como parente pobre da digitalização de cidadania.
Apesar de uns presentes “espirros” nas redes sociais sobre esta temática, devido às recentes eleições presidenciais julgo ter-se adotado um sentimento de que o melhor que podemos fazer é apostar no voto antecipado em mobilidade como mecanismo de diminuição de aglomerados. Bem, esse certamente não terá sido o resultado obtido nas imagens que todos verificámos em que no caso de Lisboa se juntaram 35 mil pessoas para votar na cidade universitária.
Recomeçando, e permitam-me esclarecer, o voto eletrónico divide-se essencialmente em duas opções. O voto eletrónico presencial e remoto. No voto eletrónico presencial o eleitor utiliza um meio eletrónico como auxiliar do processo de voto, em que se acaba por substituir o famoso boletim de voto pela sua versão digital. Um excelente exemplo foi o teste feito em Évora aquando as últimas eleições Europeias tendo inclusivo sido recomendada a sua adoção para futuros atos eleitorais conforme reportava o Público em julho de 2019.
O voto eletrónico remoto, também apelidado de i-voting, define-se por ser aquele que permite a um eleitor lançar o seu voto online. Este método encontra-se pouco estudado em Portugal e ao nível europeu apenas é utilizado na Estónia já desde 2005. Apesar da existência desta modalidade, em 2019 nas últimas eleições legislativas verificou-se que cerca de 60% da população ainda se deslocou às urnas e votou presencialmente, mas que, e aqui a parte positiva, 40% já votou de forma totalmente remota e online (ver mais detalhes sobre o i-voting na Estónia).
É mesmo sobre este último tipo de voto que gostaria de me debruçar. O i-voting traz um conjunto de complexidades inerentes ao um processo de cidadania tão crucial como o voto. Essencialmente as características a cumprir são as seguintes: segurança, integridade, privacidade, disponibilidade, auditabilidade, rapidez, acessibilidade, eficiência de custo, escalabilidade e sustentabilidade.
Não irei descrever ao detalhe como colmatar todas estas questões, mas sim tentar endereçar algumas das levantadas mais frequentemente num formato FAQ:
a) Acessibilidade
Argumento: Nem todos os eleitores irão poder utilizar esta forma de voto e poderá criar um fosso digital entre os cidadãos que conseguem efetuar a sua vida digitalmente e os que não o conseguem fazer. Isto por diversos fatores, conhecimento, aparelhos, etc.
Resposta: Correto, no entanto devemos formar e encontrar ferramentas para aqueles que não poderão utilizar este método de votação. Lembra-se da Estónia? Quem assim o pretender poderá continuar a votar presencialmente. Mais do que parar o progresso tecnológico devemos formar e criar pontes para que todos possam beneficiar do mesmo.
b) Maturidade tecnológica
Argumento: Como podemos aceitar um voto online quando temos visto exemplos de outras eleições com suspeitas de interferência (por exemplo, em votos presenciais nos USA). E a segurança? Será que um sistema destes é seguro?
Resposta: A segurança a 100% não existe. Existem sim formas de mitigar tecnologicamente como poderemos aceder a este processo recorrendo inclusive a tecnologias recentes como blockchain para validação. Aqui, nada poderá impedir algum software de correr no computador do eleitor e modificar o seu voto (exemplo USA). Este será talvez o ponto mais critico de resolver.
c)Transparência / integridade
Argumento: No voto presencial, ninguém poderá ver como eu voto. No i-voting como se garante que é o eleitor que está a votar e não um membro da família que vota por todos?
Resposta: Atualmente, já temos vários processos nos quais a integridade é “confiada” ao utilizador. Este é o caso do homebanking. Caso eu tenha um estranho com acesso às minhas credenciais e ao meu telemóvel conseguirá entrar na minha conta online e fazer uma transferência. Da mesma forma, utilizamos hoje a nossa autenticação na autoridade tributária e do cartão de cidadão para fazer processos tão importantes do ponto de vista de cidadania como votar (eg. Pedido de casamento, alteração de estado civil, entrega e registo habitacional, etc.).
Esta reflexão não pretende resolver todos os problemas nem apontar para algo que deveria ser implementado “ontem”, mas que pode constituir uma alternativa útil aos modelos existentes. Queremos que os boletins de voto continuem a chegar depois dos resultados das eleições como aconteceu no consulado da África do Sul? Não me parece…
Apesar de ser a partir de 25 de Abril de 1974 que tivemos a introdução do sufrágio universal, essencialmente continuamos a votar como nos idos tempos de 1820, em que se deu a primeira eleição para as Cortes Constituintes, consideradas o primeiro parlamento português.
Se existe alguma conclusão a ser tirada é a de que não será aceitável termos na página do CNE, CNPD e Portaleleitor.pt entradas desatualizadas e até inexistentes e, inclusive, um website que não contém informação como o www.votoelectronico.pt. Julgo que devemos e podemos fazer mais.
*E membro da direção do Portugal Agora
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Miguel Marques Paulo é membro da direção do Portugal Agora e interessado em trazer os temas de inovação tecnológica para a realidade portuguesa. É atualmente especialista em tecnologias de informação e inovação numa multinacional, onde faz o aconselhamento destas temáticas aos CIOs do grupo. Adicionalmente, é também o responsável global para realidade aumentada e virtual nesta multinacional e consultor da direção portuguesa da VRARA (Associação de realidade aumentada e virtual).








