Opinião
Um país à beira de um ataque de nervos
De repente parece ter-se entornado tudo. Portugal era um país sereno no meio da enorme confusão política europeia. Até conseguiu uma maioria absoluta de um só partido, algo com que a maioria dos nossos parceiros só podem sonhar. Desde então tudo se complicou.
Os membros do Governo caem uns a seguir aos outros, com os jornais empenhados num permanente jogo de “tiro ao secretário de Estado”. Pior, parece evidente que muitas das denúncias vieram, não da oposição, mas do próprio partido do poder. Por outro lado, a contestação social aumenta de dia para dia, com greves, manifestações e ameaças incendiárias. Que se pode fazer? Como recuperar a confiança e a estabilidade? Esta questão inclui evidentemente problemas de liderança, que interessa analisar nesta publicação.
A primeira observação é que a maioria absoluta foi conseguida a 30 de janeiro de 2022, exatamente 25 dias antes de a Rússia invadir a Ucrânia. Na data das eleições estávamos a recuperar bem de uma gigantesca crise; um mês depois estávamos a entrar numa nova crise. Greves, manifestações e ameaças incendiárias são normais num clima de inflação criado por um choque de energia, que empobreceu todo o país. Todos os outros países do mundo estão a sofrer tumultos do mesmo tipo, que ainda podem vir a ficar bastante pior. Este não é um problema de liderança; é um percalço do caminho. Pode-se chamar um terrível percalço do caminho, mas não passa de um acidente.
Existe um outro elemento que, apesar de essencial para explicar a situação, é alheio a questões de liderança: a tradicional raiva nacional contra governos estáveis. Em todas as nossas maiorias absolutas, dado o Parlamento ficar inócuo, a oposição passa a ser feita nas ruas e nos jornais. Assim, a presente animosidade da imprensa e desgaste público do Governo é paralelo ao sofrido pelos executivos da AD, do Bloco Central, das administrações de Cavaco Silva, Guterres e José Sócrates, e nada tem a ver com a atitude mediática face aos anteriores consulados de Costa. Isso apenas revela a difícil relação entre a cultura portuguesa e o poder absoluto, sempre desejado antes de existir e sempre desprezado quando se realiza.
Estes dois elementos, por muito relevantes e interessantes que sejam, pouco nos ensinam acerca da liderança. O aspeto que interessa do ponto de vista deste projeto editorial é diretamente governativo: será que os nossos dirigentes estão a perder o controle da situação? Esta questão tem várias dimensões, que têm de ser analisadas.
O primeiro elemento liga-se à pior doença de um líder bem-sucedido, que tem levado tantas estrelas à decadência: a arrogância. Uma maioria absoluta pode ser vista de duas formas: a atitude autocentrada, confirmando a excelência da solução anterior, e a atitude de serviço, considerando-a como uma oportunidade para realizar as reformas indispensáveis e impossíveis em governos frágeis. Desta vez, infelizmente seguiu-se a primeira via. O Partido Socialista conseguiu a maioria absoluta ao fim de mais de seis anos no poder. Isso foi tomado como sinal da sua superioridade política, ofuscando a realidade. A prova mais evidente da consequente arrogância é que a equipe ministerial foi mantida, no essencial, sem refrescar, sem trazer sangue novo ou envolver outros estratos da sociedade.
A outra manifestação de arrogância vê-se na escolha dos poucos novos governantes. Aí optou-se, não por um critério de qualidade, mas de fidelidade ideológica. Isso limitou a opção ao interior da máquina partidária, inevitavelmente maculada com aproveitamentos, esquemas e conflitos de interesse, facilmente denunciados pela imprensa.
A arrogância, porém, não é o pior elemento desta opção, nem a lição mais importante a tirar para a liderança. O principal problema é o segundo vício do mau dirigente: a tacanhez. O aspeto mais saliente da atual contestação é que ela não resulta de reformas profundas e relevantes.
Num país muito corporativo como Portugal, um governo que pretenda fazer as indispensáveis transformações estruturais sofre sempre alto nível de agressividade por parte de todos os interesses instalados. Isso viu-se, por exemplo, no tempo dos governos de Cavaco Silva ou na primeira metade do consulado de José Sócrates. Não é essa, de todo, a situação atual. Apesar de não ter de se incomodar com equilíbrio parlamentar, gozando de apoio maioritário próprio, o atual Governo não tomou isso como responsabilidade para abordar, finalmente, os graves desequilíbrios nacionais. Limitou-se a manter a gestão da conjuntura e a alimentar os seus grupos de apoio. Apesar disso, como tinha acontecido nas administrações Guterres, sofre uma terrível barragem de ataques daqueles mesmos que pretende servir. Assim, paga o custo da contestação sem beneficiar em nada o país.
Como se resolve isto? Uma maioria absoluta tem em si sempre os meios para mudar de rumo e optar por uma via mais humilde e ambiciosa, corrigindo o caminho deste primeiro ano. Será que podemos esperar isso?