Opinião

Um novo “people challenge”

Mário Ceitil, formador e professor universitário*

Com as profundas convulsões do mundo atual, que têm gerado frequentemente realidades não lineares e incompreensíveis, muito se tem discutido sobre as implicações desta nova (des)ordem social nos comportamentos das pessoas, nos seus modos de sentir e nos seus modos de agir.

É por isso natural que estas mesmas preocupações sejam transpostas para a realidade das organizações e, muito em concreto, para as estratégias e práticas ao nível da gestão das pessoas, domínio que hoje, precisamente devido à crescente complexificação dos processos sociais, adquire uma atualidade e importância que o elevam à categoria de uma grande função da gestão empresarial e tem vindo a tornar-se num tema que ocupa cada vez mais as mentes dos executivos a todos os níveis, que já não têm a veleidade de afirmar que “essa coisa” da Gestão das Pessoas é só para as ditas “Direções de Pessoal”.

Na verdade, motivar os colaboradores, por exemplo, é hoje um “osso cada vez mais duro de roer” e as chamadas “técnicas de motivação” inspiradas nos modelos de um comportamentalismo acéfalo e “sem alma”, já não funcionam em pessoas cada vez mais autodirecionadas e conscientes do seu próprio poder instituinte nas organizações. Assim como hoje também já não é sustentável manter uma relação de liderança com base em promessas que nunca se cumprem, mas que vão servindo de engodo a mentes ingénuas que vão permanecendo num “osciloscópio” passivo/agressivo, em que as emoções fluem de acordo com a batuta motivacional do maestro, mais ou menos inspirado… ou mais ou menos manipulador.

Na vida, realmente muita coisa tem mudado; e na Gestão das Pessoas muita coisa mudou já, e vai continuar a mudar, convocando as mentes e as práticas para um novo, mais profundo e muito mais ousado “People Challenge”.

Este novo desafio funda-se, no essencial, numa profunda reconceção do lugar e do papel das pessoas nas organizações, num contexto em que assistimos, e vivemos, à derrocada dos paradigmas tradicionais herdados da Segunda Revolução Industrial.

Atualmente, a sociedade de informação “pós-industrial”, com a elevação do conhecimento à categoria da mais importante força produtiva, produziu uma nova classe de pessoas: o “proletariado” industrial cedeu o lugar ao “cognitariado” pós-moderno.

Esta importantíssima migração das forças produtivas gerou por sua vez uma mudança cultural profunda, sobretudo nas chamadas sociedades industrializadas, onde estamos a viver um processo de transição de uma universal cultura de massas, para uma fragmentada cultura de gostos que, dando um cada vez maior relevo à particularidade e à individualidade, já não completamente subjugadas aos ditames de uma qualquer força qualificada de absoluto, oferece uma quase infinita variedade de estilos e práticas de vida.

Esta “explosão de diversidade” faz-se naturalmente sentir em todo o tecido social e tem obviamente expressão no ambiente interno das organizações, fazendo emergir novas necessidades em termos de competências críticas a desenvolver pelos profissionais e, muito em particular pelos seus líderes.

Todavia, e em flagrante contraste com estas “ondas” de mudança, se olharmos para o passado recente das nossas empresas, é fácil encontrarmos ainda alguns comportamentos que são uma clara expressão de um estereótipo de liderança que considera a diferença como “um inimigo a abater” ou, em tom menos dramático, um “adversário incómodo”.

Esses mesmo líderes, contrariando a evidência de uma enorme diversidade cultural do planeta que estimula a adoção de um mindset mais pluralista, persistem em manter práticas de decisão autocentrada e de imposição autoritária de poder, procurando reduzir as margens de autonomia dos colaboradores e limitar-lhes drasticamente o potencial criativo.

Mas o “cognitário” de hoje, é completamente diferente do “proletário” de ontem.

Sendo o conhecimento a maior força produtiva em ambientes de grande fragilidade e imprevisibilidade, são os colaboradores das organizações os verdadeiros “detentores do capital”, agora justamente designado como “capital humano”. Neste contexto, deixa de fazer sentido continuar a utilizar a palavra “trabalhadores”, herdada da Segunda Revolução Industrial, não por mera cedência a certos modismos semânticos mais “democráticos”, mas porque os atuais relacionamentos profissionais deixam de estar centrados na mera execução de um “trabalho”, para passarem a fazer sentido na prestação de um contributo.

Na ordem tradicional, para “trabalhar” bastava obedecer a ordens e cumprir as regras definidas, sem a necessidade da mediação de qualidades humanas mais profundas, o que conduzia ao efeito de “a pessoa viva transformar-se num apêndice da máquina” (Fromm, 1975). Mas “dar um contributo” pressupõe tratar-se de uma ação intencional, que obedece a uma estratégia pessoal e só se consegue quando cada pessoa se identifica, mental e emocionalmente, com a sua vida profissional e quando sente que o campo de desenvolvimento da sua organização é uma parte essencial do seu campo de desenvolvimento como pessoa.

Hoje, pede-se (e espera-se) a quem quiser estar realmente ativo, e construtivo, na sociedade, e obviamente nas organizações, que seja capaz de olhar para longe e fascinar-se com o imprevisível; mas, ao mesmo tempo, pede-se também que tenha a disciplina e autorregulação emocional que dê a necessária solidez nos percursos difíceis e a indispensável resiliência para vencer os desaires das soluções imperfeitas.

É deste tipo de “massa crítica” que as empresas precisam: pessoas dotadas de um mindset proativo, que não façam da vida um compromisso reativo com o pasmo e tenham sólidos alicerces de propósito pessoal. Pessoas que interiorizem que a sua vida não é uma mera decorrência determinista do bem ou do mal que alguém alegadamente lhes fez, mas é, no fundamental, o resultado das próprias escolhas.

E é justamente aqui, no Propósito que se consubstancia um dos principais elementos do “People Challenge” do mundo pós-moderno.

Como foi inequivocamente demonstrado ao longo de todo o processo que decorreu desde a Segunda Revolução Industrial, o ser humano não pode viver como “se nada fosse, como se não passasse de um objeto. Sofre intensamente quando se vê reduzido ao nível da máquina que se alimenta e procria, ainda que tenha toda a segurança de que necessita” (Fromm, 1975).

Por isso, o desafio major que hoje se nos coloca é justamente criar, a partir de cada empresa e de cada organização, um território que propicie muito mais do que uma experiência técnica estimulante que, ainda que importante, não satisfaz as necessidades mais profundas do ser humano; um ambiente que propicie que cada um encontre no propósito da sua organização uma parte fundamental do seu propósito de vida.

Como assinala Fromm (op.cit.)o homem busca o drama e o arrebatamento” e é urgente redescobrir o espaço profissional como uma “tentativa de dar sentido à vida e de experimentar o melhor estado de intensidade e de força que pode (ou que acredita poder) conseguir em determinadas circunstâncias(id.)

Esse é o grande “People Challenge” do Sec. XXI. E acredito que seja o desafio do próximo milénio…e dos outros a seguir. Porque é o desafio de conquistar, para o Homem, uma maior, mais expandida e mais profunda Humanidade.

Referências
FROMM, E. (1975). Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro: Zahar Editores

*Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG – Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas e membro do Conselho Nacional dos Psicólogos.

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Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

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