Opinião

Trabalhar numa multinacional…

Ricardo Monteiro, comentador de política internacional e economia

Há cerca de quarenta anos, o melhor que um jovem graduado poderia esperar para a sua vida profissional era ser contratado por uma “multinacional”. O salário seria melhor que noutras empresas ou funções e algum sistema de avaliação garantia promoções ancoradas no mérito.

Expressões como “house allowance”, “school fees”, “moving expenses”, “return ticket”, etc. garantiam ao jovem gestor a sua chegada à aristocracia da gestão. A possibilidade de ir parar a algum mercado no estrangeiro era real e muito desejada. O estrangeiro era uma espécie de “MBA”, só que melhor porque, como é sabido, apenas no estrangeiro é que as coisas são como deve ser, refletidas, planeadas, científicas e com resultados medidos.

Antes de lá chegar, porém, uma série de passos tinham que ser preenchidos. Entrava-se como “management trainee”. Passava-se a “junior manager” e, depois, dependendo da carreira escolhida, o caminho continuava. Por exemplo, se fosse marketing ser-se-ia “junior product manager”, “product manager”, “marketing manager”, “marketing director”, e por aí fora até chegar ao posto de CEO o que, ainda que fosse num país pequeno e relativamente irrelevante como Portugal, significava a passagem da aristocracia à verdadeira realeza. Como o mundo tinha fronteiras muito reais, o CEO local, realmente, tinha obrigações e bastante autonomia. Era ele o responsável legal e fiscal da empresa e, sendo a distância real e as comunicações por “telex” ou “fax”, era necessário que alguém, localmente, tivesse a capacidade de decidir e aprovar coisas sem para tal depender de um qualquer centro em Londres ou Detroit e assim perder oportunidades de mercado ou incorrer em erros que impedissem o fluir normal dos negócios.

A verdadeira multinacional, além disso, era entendida como uma empresa que realmente, tentava acorrer às necessidades das pessoas de cada país. Testes de mercado eram absolutamente obrigatórios, a Coca-Cola no México é mais açucarada que em França, o Citroën no Brasil tem suspensões reforçadas, no Japão a maquilhagem promete “peles mais brancas”, em Portugal um “bronzeado natural”… o que valia em Nova Iorque não era necessariamente válido em Madrid, entender e atender a povos e culturas eram a força do gestor, não só do ponto de vista comercial, mas também da gestão.

Nos países nórdicos as decisões são forçosamente consensuais, contrariamente aos países latinos onde elas são quase sempre impostas. Nos países orientais, sobretudo no Japão, mais de noventa por cento do tempo de gestão é consumido no planeamento das atividade e apenas quando há certezas e acordo sobre as soluções a adotar é que se toma a decisão final e se passa à execução. Na cultura americana, o importante é o encurtamento do tempo de tomada de decisão e a tendência é resolver os problemas à medida que eles vão surgindo.

O gestor de uma multinacional era, pois, uma espécie de canivete suíço, apto a enfrentar qualquer problema em qualquer país e a estudar as soluções mais adequadas, assumindo responsabilidades, atendendo às diferenças locais e deixando o seu cunho e obra por onde passava. Depois veio a globalização… de repente, o estrangeiro passou a ser igual à terra natal, a standardização ganhou a guerra à customização, a otimização de custos tornou-se mais importante que a adequação dos bens e serviços a cada país.

As redes sociais fizeram com que um jovem no Vietnam tenha os mesmos ícones aspiracionais que um seu congénere em Barcelona. E como é hoje trabalhar para uma multinacional se, todo o esforço está hoje na uniformização? Pois bem, o mundo andou para trás. Trabalhar numa multinacional, sobretudo se for de produtos de consumo, é hoje o equivalente a ser funcionário público no tempo do Salazar. O centro decide tudo porque Coimbra é igual a Toulouse, “ambas têm universidade”. O importante é seguir as regras e assegurar-se que o “reporting” sai a horas e devidamente preenchido no “template” providenciado para o assunto.

Os cunhos pessoais são inúteis e mesmo indesejados. Entregar na data é mais importante que preencher o objetivo. Cumprir o orçamento é muitíssimo mais importante que saber se há desperdício ou oportunidade desatendida por um pouco mais de custo. Por tudo isso, os “house allowance” e os “school fees” desapareceram. Ir para o estrangeiro é hoje o equivalente a ser promovido a “chefe de secção” e com perda de segurança laboral e os pobres dos CEOs locais, antes verdadeiros embaixadores da sua empresa, são hoje meros burocratas, mais valorizados pela sua obediência que pelo seu “savoir-faire”.

Claro que ganham menos, muito menos. E, em muitos casos, embora mantendo o título, último resquício da importância que tiveram pelo passado, são relembrados todos os dias que até o título podem perder se o seu país virar uma “área de vendas” ou for “integrado” numa qualquer “região”… De todas as consequências da  globalização” uma das menos refletidas é a desvalorização que a mesma trouxe aos gestores das multinacionais. Talvez seja por isso que, até mesmo em Portugal, haja quem prefira abrir um café a entrar nesses desvalorizados reinos da gestão.
A gestão morreu no dia em que a Apple provou que se pode impor seja o que for, seja a quem for.

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Ricardo Monteiro

Ricardo Monteiro

Ricardo Monteiro é ex-presidente global da Havas Worldwide e ex-chairman global da Havas Worldwide,empresa de marketing e publicidade com presença em mais de 70 países e líder em Portugal. É speaker internacional, comentador de política internacional e economia na CNN e professor convidado da Porto Business School. Foi administrador não-executivo na Sonae MC, e special advisor no jornal Público entre 2018 e 2022. Ricardo Monteiro é casado com Leonor Jesus Correia, pai de quatro filhos e cinco vezes avô. Os... Ler Mais..

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