Opinião

Podemos mudar o nosso mundo?

Eugénio Viassa Monteiro, professor da AESE-Business School*

Na minha vida profissional, com interesse também em escrever “casos” sobre realidades variadas, descobri, maravilhado, como pessoas com determinação para pôr em prática as ideias em que acreditavam foram capazes de transformar em boa parte a sociedade.

Num ambiente de paz, pessoas com qualidade e com valores podem escrever novos capítulos da história, transformando o ecossistema de pobreza e miséria em abundância de riqueza e empregos. Veja como, com estes exemplos brilhantes da vida real, na Índia:

1. Um deles é a GCMMF- Federação de Cooperativas de Comercialização do Leite de Gujarat, Ltd. É uma das primeiras cooperativas que surgiu em Anand, em 1946, que abriga hoje 3,6 milhões de pequenos agricultores. A GCMMF comercializa leite pasteurizado e toda uma gama de derivados de leite. A empresa faturou US$ 5.800 milhões no ano passado.

O mais interessante é a replicação do modelo através do National Dairy Development Board (NDDB), presidido pelo Dr. Kurien. Agora, cerca de 100 milhões de famílias na Índia podem contar com um fluxo de receitas das suas vendas para a cooperativa local. O Dr. Kurien ingressou na cooperativa em 1949 e foi o seu Presidente durante um longo período; ele definiu as suas principais políticas para pôr os cooperantes no lugar central e pagar o melhor possível pelo leite que traziam.

2. Uma resposta diferente veio do Dr. Venkataswami (Dr. V), de Madurai. Ele viu uma enorme quantidade de pessoas cegas devido às cataratas. Como oftalmologista, sabia que uma cirurgia simples para substituir a retina opaca por uma lente intra-ocular artificial, LIO, é uma solução simples e muito eficaz para devolver a visão.

Em 1978, quando se aposentou do hospital público, aos 58 anos (norma na Índia), decidiu criar uma clínica com 11 camas, só para Oftalmologia. Convidou a sua irmã e o cunhado, ambos oftalmologistas e cirurgiões, para trabalhar com ele. A clínica foi um sucesso e, então, criou outra com 30 camas para pessoas pobres, que não podiam pagar nada. Depois, com um empréstimo bancário, construiu um enorme hospital, onde estabeleceu que 40% pagariam a conta e os 60% restantes não pagariam por serem pobres. E mesmo com essa “desproporção” o conjunto era rentável, acabando por cobrir todas as despesas.

Como é que ele fez? Ele projetou um sistema eficiente, com alto profissionalismo e cuidado: cada médico é assistido por quatro enfermeiras, duas para preparar o paciente e ajudar o médico e as outras duas para dar todas as instruções pós-operatórias. Assim, o fluxo contínuo de pacientes, a entrar e sair, mantém o médico ocupado, fazendo o seu trabalho serenamente e com a máxima concentração.

Hoje, Aravind E.C.S. tem 14 hospitais e 91 centros de visão. Em 2019-20, 4,6 milhões de pacientes foram examinados e 515.000 cirurgias de catarata foram realizadas.

As LIO importadas dos EUA custavam US$ 200/cada. Todos os outros custos somavam cerca de US$ 35. Para poder fazer um grande número de cirurgias decidiu fabricar lentes em Madurai, com a melhor tecnologia. Agora produzem um milhão de lentes por ano, usam o que precisam e vendem o restante para instituições de caridade a um preço simbólico de cerca de US$ 5 cada.

3. Tive a sorte de entrar em contacto com o Prémio Nobel, Muhammad Yunus, criador do Grameen Bank, de microcréditos, com forte presença em Bangladesh e países do Leste Asiático. O conceito foi posteriormente mais elaborado para aliviar a pobreza a milhões. Há um grande número de Grupos-de- Auto-ajuda, com 10 a 20 senhoras cada, sob a liderança de uma delas, que recorrem a empréstimos para o grupo. Assim, o valor do empréstimo é maior e o risco é menor, devido à diversidade de actividades. Essas ideias correram depressa na América, Brasil, Africa, etc. Os microcréditos são devolvidos em pequenas prestações, durante o ano, e não exigem garantias.

4. Mais recentemente conheci a SahyadriFarms, com sede em Nashik. Um agricultor, sozinho, costuma ser explorado pelo intermediário que compra a um preço baixo para vender depois com uma alta margem. Se o agricultor estiver associado a outros, com os procedimentos bem coordenados e a venda para redes de distribuição ou para exportação, isso permite obter melhores preços e pagar o que é justo a cada agricultor.

Esta Organização de Produtores Agricultores- FPO, criada em 2010, está a crescer rapidamente a ponto de em 2020/21 ter vendido US$ 70 milhões, sendo 50% exportados, principalmente para a União Europeia. O que eles exportam? Uvas sem semente, produzidas na Índia de janeiro a junho (na Europa a uva dá-se de setembro a novembro), tomate – fresco e concentrado -, manga e concentrado, mamão, romã, cebola, grande variedade de vegetais, etc.

A SahyadriFarms conta hoje com 15.400 agricultores com pequenas terras que cultivam e vendem o produto a um preço muito melhor do que o que é garantido pelos mandis[1] locais. Ao escrever o caso senti necessidade de visitar, ver e conversar com os responsáveis. Vi e deduzi a transformação radical nos hábitos de cultivo nas zonas ao redor de Nashik. Agora, os agricultores cultivam de acordo com a propensão do solo e principalmente o que dá melhor rendimento, isto é, o que é exportável ou se pode vender bem às grandes redes grossistas e retalhistas.

Num local onde praticamente não existiam variedades de árvores e vegetais diferentes das tradicionais, agora há enormes extensões de videiras, de diferentes castas, uvas boas para comer, doces, sem sementes… Também manga Alfonso, plantações de tomate, cebolas, etc. tudo numa perspetiva empresarial.

5. Um fenómeno muito parecido, perto de Nashik, a 40 km de distância: um produtor de vinho, com a marca Sula, está a prosperar. À sua volta, centenas de hectares de vinhas, de diferentes castas e proveniências, encontram-se em plena produção.

E novas marcas de vinho aparecem nas proximidades, tornando a competição um poderoso impulsionador da inovação. A enorme aquisição de uva pela Sula fez uma transformação radical e os solos bem adaptados às vinhas estão a produzir cada vez mais.

Vejo que é mais do que tempo para as pessoas orientadas para os negócios identificarem e desenvolverem oportunidades brilhantes no agronegócio, capazes de empregar milhares de pessoas, dando-lhes uma boa formação para funções básicas, mas também para gerir, organizar atividades e estabelecer centros de R&D aplicada, de acordo com as necessidades da empresa, para antecipar melhorias de qualidade e da rentabilidade.

Em ambientes pobres, pessoas com iniciativa, ideias e algum dinheiro para investir para criar cooperativas, FPOs e associações podem fazer um ótimo trabalho. Em Anand, quase todos eram pobres, mas agora vivem bem, e seus filhos estudam na Universidade ou nos IITs (Indian Institute of Technology, muito selectivos). Ou como na SahyadriFarms, onde exportação é a palavra de ordem e os agricultores “marginais” agora mais que duplicaram as suas receitas. Ou como fez o Aravind, criando centros eficientes e acessíveis para identificar e tratar os males da nossa época como a hipertensão, ou para a deteção precoce dos cancros mais frequentes …, ou outras doenças traiçoeiras, como o Dr. V. fez com a cegueira.

Este parece ser o segredo: fomentar mais cooperativas em cada um dos Estados; promover milhares de FPOs; replicando as boas experiências, com gestores a tempo completo, dedicados e pensando em como atender bem as camadas sociais pobres.

Foi exatamente isso que Lal Bhadur Shastri, PM, fez quando visitou Anand, para falar com V. Kurien, em 1964. Ele estabeleceu o NDDB- National Dairy Development Board e nomeou Kurien seu Presidente para replicar cooperativas de leite no país, como a AMUL, o que Kurien fez com grande sucesso.

Quanto mais rápido e melhor isso for feito, mais as pessoas poderão aproveitar a oportunidade de melhorar o padrão de vida de toda a sua família.

[1] Mandi, mercado local que compra por grosso ao preço mínimo garantido

*Professor da AESE-Business School, do IIM Rohtak (Índia) e autor do livro “O Despertar da Índia”

Nota: Este artigo foi originalmente publicado no Herald de Goa, no dia 2 de agosto de 2022.

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Eugénio Viassa Monteiro

Eugénio Viassa Monteiro

Eugénio Viassa Monteiro, cofundador e professor da AESE, é Visiting Professor da IESE-Universidad de Navarra, Espanha, do Instituto Internacional San Telmo, Seville, Espanha, e do Instituto Internacional Bravo Murillo, Ilhas Canárias, Espanha. É autor do livro “O Despertar da India”, publicado em português, espanhol e inglês. Foi diretor-geral e vice-presidente da AESE (1980 – 1997), onde teve diversas responsabilidades. Foi presidente da AAPI-Associação de Amizade Portugal-India e faz parte da atual administração. É editor do ‘Newsletter’ sobre temas da Índia,... Ler Mais..

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