Entrevista/ “Podemos criar os produtos certos para criar o mundo que queremos ver”

“Não sejam disruptivos só porque sim. Este é o meu maior conselho. Construam uma visão sobre quais são as mudanças que querem ver na sociedade”. Esta é a sugestão de Radhika Dutt para os jovens empreendedores com vontade de criar novos produtos.
Autora do livro “Radical Product Thinking: A nova mentalidade para inovar de forma mais inteligente”, Radhika Dutt é autora, empreendedora e líder de produto. Ao longo do seu percurso profissional, que já passou por diferentes países na Europa, Ásia, África e América, aconselhou start-ups de alta tecnologia e agências governamentais na construção de produtos radicais que impulsionam mudanças fundamentais. Recentemente esteve em Lisboa para participar na Productized Conference e partilhou com o Link to Leaders a sua visão do papel de um product manager.
Quais as principais mensagens que deixou aos portugueses na conferência Productized?
Pensamos que os EUA estão muito à frente na forma como construímos produtos, ou que os product manager estão mais estabelecidos nos EUA. Mas eu não vejo as coisas dessa maneira. Encontro os mesmos desafios que existem nos EUA a nível global. E o desafio para a maioria dos product managers é que é muito difícil serem vision-driven.
O que vejo em vez disso é que muito frequentemente olhamos para aquilo que os clientes querem, para o feedback do cliente. Somos reativos, vamos atrás daquilo que o cliente quer ponto por ponto. E muitas vezes fico frustrada quando pergunto aos product managers “qual é a vossa visão para o produto?”. Porque antes de perguntarem aos clientes o que eles querem, de perceberem as necessidades deles suficientemente bem, é preciso saberem qual é a vossa visão do produto.
E esta é parte em que eles têm muita dificuldade em responder. Esta é a mudança e o driven mindset que gostaria de ver na comunidade de produto. Quero partilhar esta abordagem de vision driven, de que podemos pensar de forma diferente o nosso produto, que o nosso produto é um mecanismo de criar mudanças no mundo. O nosso produto só terá sucesso se tivermos capacidade de criar essa mudança.
O que significa que, enquanto product manager, temos este incrível duplo poder e responsabilidade de decidir qual a mudança que queremos ver. E tendo essa clarividência de visão do que é essa mudança, então há que passá-la para uma estratégia do que faz todos os dias, de como se mede o sucesso. Tudo isso está no nosso controlo ou, pelo menos se não estiver no nosso controlo direto, temos influência sobre isso. Podemos criar os produtos certos para criar o mundo que queremos ver.
“(…) gosto de perguntar antes “se estamos a fazer a disrupção certa? É aí que sinto que não estamos”.
Trabalhou em vários mercados. Quais as principais diferenças que encontra entre os EUA e a Europa no que se refere à visão sobre o produto?
Muitas vezes retrata-se que os EUA são mais disruptivos, mas em vez disso gosto de perguntar antes “se estamos a fazer a disrupção certa? É aí que sinto que não estamos. Frequentemente nos EUA sinto que estamos a ser disruptivos apenas pela disrupção. É por isso que uma boa visão do que tenho estado a falar, é dizer “qual é o problema, porque precisa de ser resolvido, e depois ver como é o mundo fica se o resolvermos”. A menos que consigamos responder a essa questão de como pode ser resolvido, talvez não tenhamos nenhuma disrupção de negócio. Pensamos que os Estados Unidos serem disruptivos é bom. Eu não acho isso necessariamente bom. Não tenho a certeza de que isso seja criar uma sociedade melhor.
Nos últimos anos, quais são os exemplos de bons produtos, dos que reúnem todas essas vertentes de que falou?
Já que estamos a falar de países e que como eles abordam as coisas, deixe-me dar um exemplo positivo. Vivi em Singapura durante dois anos e meio tive de ter um visto de trabalhador no dia seguinte a ter aterrado, ainda com jetlag. Tive de ir a um departamento governamental que era mais calmo do que a sala de uma terapeuta. Perguntaram-se se precisava de ajuda, queriam prestar o melhor serviço ao cliente possível. Havia recantos acolhedores onde as crianças podiam brincar. Nunca tinha visto um serviço ao cliente assim em departamentos governamentais. Mas não é apenas sobre serviço ao cliente porque eles tinham uma visão que queria fazer de Singapura um hub para talentos de todo o mundo e para atrair esse talento eles tornam tudo mais fácil. Este é um exemplo de vision driven transposto para como experienciar serviços em áreas governamentais.
O que é que um produto deve ter para ser inovador, disruptivo?
Primeiro temos de começar por perceber porque precisamos dessa disrupção e a menos que consigamos definir qual o status quo do mundo e porque devemos resolver e como resolvemos. Essa clarividência é o ponto de partida. Devemos ter uma estratégia clara e pensar o que faz com que alguém chegue ao teu produto, qual é a nossa solução, como é o nosso modelo de negócio.
A forma como medimos o sucesso deriva disso. O que quero dizer é que em vez de olharmos para o sucesso através de matrizes populares, e não digo que não sejam importantes, a verdadeira medida de sucesso é “será que realmente criei essa mudança?”.
Podem medir-se todos os elementos da estratégia, criar uma hipótese… e será que isso realmente funciona? Será que eu estava certo acerca disto? É ser honesto cerca das métricas que está a medir.
“Na IA vamos ser honestos sobre quem será prejudicado, sobre quem será ajudado, sobre quem será beneficiado”.
Como vê a relação entre produtos e inteligência artificial e toda a tecnologia que temos atualmente? É uma boa relação ou nem por isso?
Tenho sentimentos muito fortes sobre este tema. Escrevi um artigo sobre a minha visão sobre a inteligência artificial e a responsabilidade que vem associada à construção de produtos. A primeira coisa que gostaria de dizer é que, como product manager, como pessoa de produto, influenciamos a vida das outras pessoas, e com isso vem uma enorme quantidade de responsabilidades porque podemos influenciar vidas de uma forma negativa. Olhemos para o exemplo da IA.
Olhemos para muitos empreendedores famosos, como Reid Hoffman, o fundador do LinkedIn, por exemplo, que têm falado sobre como a IA vai fazer bem ao mundo e têm espalhado esta mensagem de que tudo é positivo. Ele também disse que haveria alguns danos em algumas áreas.
Para mim, isso lembra-se o filme Shrek, em que Lord Farquaad era o vilão que dizia “alguns de vocês podem morrer, mas esse é um risco que estou disposto a correr”. E isso é exatamente o que ele diz. Então na IA vamos ser honestos sobre quem será prejudicado, sobre quem será ajudado, sobre quem será beneficiado… Temos de ter consciência, de pedir às pessoas dos produtos que carreguem as responsabilidades e sejam honestos acerca desse tipo de risco. O que queremos realmente e se é essa a nossa visão para a sociedade.
Com tudo isto em mente que conselhos deixa aos jovens empreendedores que estão a construir coisas novas, novos produtos?
Não sejam disruptivos só porque sim. Este é o meu maior conselho. Construam uma visão para quais são as mudanças que querem ver na sociedade. Não meçam o sucesso com base em quantos fundos conseguem obter. Porque essa é a “doença” que experienciei enquanto empreendedora.
Sejam honestos sobre qual é o problema que deve ser resolvido e como o vão resolver. Não apanhem o “hero síndroma” em vez da sua vision driven. Não só evitam essas “doenças”, como também significa que têm mais hipóteses de que o seu produto seja realmente bem-sucedido e de que conseguem realmente fazer dinheiro.
“Essa é a mudança que eu gostaria que pudéssemos ver, ou seja que todos tivéssemos a responsabilidade que vêm associada ao facto de sermos product managers”.
A Radhika é autora, empreendedora… quais são as sua lutas nesta área?
As minhas lutas são nas coisas de que gosto muito e com que me preocupo. A maior luta que sinto é o reconhecimento da nossa responsabilidade como product managers. O exemplo que lhe posso dar é exatamente um que vem de Portugal. Quando estava a viajar pelo país em 2017 fui ao mosteiro da Batalha que é lindíssimo. Mas o que me intrigou acerca desse mosteiro é que havia um tecto oval construído por um arquiteto e que esse teto não tinha suporte. Recuando à altura em que foi construído, as pessoas pensavam que não seria possível e que era tão perigoso construí-lo, tanto que só usaram trabalhadores que eram condenados à morte. Depois que o construíram, o arquiteto provou que era seguro. Teve de dormir debaixo dele durante algumas noites para provar que era seguro.
Nós, enquanto product managers, é esse tipo de responsabilidade que temos de ter. Construímos produtos e lavamos as nossas mãos disso. Construímos os produtos, mas como vão ser usados é com os utilizadores. Se são usados para o bem ou para o mal não é culpa nossa. Apenas construímos uma plataforma que os utilizadores decidem como usar e isso não é pensar como aquele um arquiteto, que construiu aquele teto.
Há uma responsabilidade, não podemos lavar as nossas mãos daí e “dizer boa sorte para si quando começar a usá-lo”. Essa é a mudança que eu gostaria que pudéssemos ver, ou seja, que todos tivéssemos a responsabilidade que vêm associada ao facto de sermos product managers.
Acha que corremos o risco de ficarmos na mão de pessoas insanas, que criam produtos que fazem mal às pessoas?
Acho que não o farão de propósito. “Não podemos atribuir maldade àquilo que podemos explicar como estupidez”, é uma frase que ouvi…
Acredito que não fazemos coisas más de propósito. Nenhum de nós quer ser esse vilão. O que acontece é que nos podemos tornar acidentalmente em vilões, porque não pensamos através do que é a mudança. Não trazemos equidade aos nossos produtos de uma forma sistemática. Apenas os construímos.
Temos uma grande ideia e depois o resto já não é da nossa conta. Fazêmo-los, medimos o sucesso com base em receitas, lucro e em quantas pessoas usam os nossos produtos… E há consequências inesperadas e essa é a atitude que temos de mudar. Temos de trazer equidade para o nosso produto.