Opinião
Parrésia: dizer a verdade ao poder
Será a incompreensível guerra na Ucrânia um sinal de que se está a perder a virtude ética de confrontar o poder com a verdade? Como se instala num governo ou numa empresa uma cultura que elimina a coragem de falar? Será possível evitar essa armadilha? Ou estará o poder tão ciente da verdade que o que lhe interessa realmente é escondê-la?
Depois de tantas imagens chocantes com as quais a guerra na Ucrânia nos confrontou, é muito fácil esquecermo-nos de um episódio essencial, poucos dias antes do início da invasão. A 21 de fevereiro, Vladimir Putin decidiu convocar o Conselho de Segurança da Rússia e transmitir a reunião em direto na televisão pública, supostamente para ouvir a opinião dos conselheiros sobre a sua proposta de reconhecer a independência das duas repúblicas separatistas da Ucrânia.
Sentado sozinho por trás de uma secretária imponente num enorme salão do Kremlin, Putin chamou-os ao púlpito um a um. Quando chegou a vez de Sergei Naryshkin, diretor do SVR, o serviço de inteligência russo que sucedeu ao antigo KGB, este surpreendeu ao sugerir uma “última oportunidade” para a implementação dos acordos de Minsk deixando para “último caso” a decisão que estava a ser discutida. Putin saltou na cadeira e interrompeu-o, perguntando-lhe se estava a sugerir que se abrissem negociações e ordenando-lhe que falasse claramente. Lívido, Naryshkin balbuciou que apoiaria a proposta, o que não satisfez Putin. Sergei entra em pânico e diz que apoia a proposta de entrada das repúblicas de Donetsk e Lugansk na Federação Russa. O presidente russo ri-se com paternalismo e diz-lhe que não estavam a discutir isso, “apenas” o reconhecimento da independência dessas repúblicas. Só depois de dizer que é isso que apoia é que Naryshkin é autorizado a voltar a sentar-se…
Três dias depois, a Rússia deu início a uma invasão sangrenta de todo o território da Ucrânia. Em pouco mais de um mês, mais de 4 milhões de pessoas tiveram que sair do seu país, fugindo de um rasto de morte e destruição ainda por contabilizar. Nada se compara com o sofrimento do povo Ucraniano, mas todos saem a perder. Como foi possível chegar a esse ponto sem que ninguém o tivesse conseguido evitar?
Penso que a reunião do Conselho de Segurança Russo nos dá uma pista crucial. Um desastre desta magnitude só é possível quando já ninguém consegue dizer a verdade a quem decide, nem aqueles que lhe são próximos. É importante perceber quem é Sergei Naryshkin, o aterrorizado diretor dos serviços secretos russos. Naryshkin conhece Vladimir Putin desde que ambos pertenciam ao KGB há perto de 40 anos. Sergei progrediu mais rapidamente e desempenhou papeis mais importantes até à queda da União Soviética. Nos anos 1990 deixou o KGB, tornou-se “investidor” e entrou para a administração da tabaqueira americana Phillip Morris.
No início do segundo mandato de Putin como presidente, em 2004, foi chamado ao governo, onde rapidamente chegou a vice-primeiro-ministro. Quando Medvedev assumiu a presidência, por troca com Putin, Naryshkin foi chamado para ser chefe de gabinete do novo presidente, passando a ser os olhos de Putin no Kremlin. Quando este regressou à presidência, foi recompensado por esse serviço com o cargo de presidente da Duma (a câmara baixa do parlamento russo) e, desde 2016, com a direção dos serviços secretos. É assim um velho amigo de Putin que se revela incapaz de falar, confirmando o que Sir Jeremy Fleming, diretor do serviço de informações britânico GCHQ, afirmou recentemente: Putin cometeu um tremendo erro de cálculo ao invadir a Ucrânia e os seus conselheiros “têm demasiado medo para lhe dizerem a verdade”…
A coragem de dizer a verdade ao poder foi, curiosamente, o último grande tema que o filósofo francês Michel Foucault investigou antes da sua morte prematura em 1984. Os seus dois últimos cursos no Collège de France centraram-se na noção de “parrésia”, do grego parrhesía, que significa dizer toda a verdade, sem subterfúgios nem truques de retórica, mesmo que isso coloque em risco a relação entre quem fala e quem ouve. Na sua releitura da antiga filosofia grega, Foucault diz mesmo que esta noção constituía o fundamento ético esquecido da democracia ateniense, associando a decadência das cidades ao declínio dessa relação de coragem com a verdade. Será a tragédia Ucraniana a expressão máxima de um fenómeno que, de tão frequente, se tornou invisível nas nossas sociedades e organizações?
No século XX, dizer a verdade ao poder tornou-se numa tática política utilizada para resistir a regimes opressivos e autoritários, utilizada por personalidades tão diversas como Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Vaclav Havel ou o Dalai Lama. A expressão foi usada em campanhas pelos direitos humanos e apresentada como um imperativo ético, embora os riscos inerentes à coragem da parrésia sejam bem reais: perder amigos, a liberdade ou até a própria vida. Até porque, como Noam Chomsky afirma, muitas vezes o poder já conhece a verdade e está bastante ocupado a tentar escondê-la…
Ainda assim, por vezes, quem se encontra na posição de poder é quem tem mais a perder. Imaginem um líder político que chega democraticamente ao poder e se rodeia de pessoas da sua confiança que lhe dizem, por norma, a verdade do que realmente pensam. Parrésia gera boa informação que ajuda a tomar melhores decisões. Com o tempo, contudo, essas pessoas vão-se retirando ou vão sendo promovidas para longe. O círculo mais próximo do líder é gradualmente preenchido por pessoas com quem ele não tem o mesmo tipo de relação e que, por isso, não têm a coragem para lhe apontar os erros ou para contrariar os seus argumentos. Em pouco tempo, instala-se uma cultura de bajulação que se limita a reforçar as opiniões desse líder, tornando mais frequentes os erros e as más decisões. A queda torna-se numa questão de tempo… Olhando para os ciclos políticos em Portugal nos últimos 30 ou 40 anos não é difícil encontrar exemplos deste fenómeno.
Consideremos agora o que este fenómeno provoca em organizações empresariais. As empresas não são democracias e, por isso, não têm mecanismos tão expeditos para se verem livres de líderes alheados da realidade. Isso faz com que, muitas vezes, seja a própria empresa a cair, fazendo com que todos os que para ela trabalham, direta ou indiretamente, paguem o preço pela falta de coragem de quem rodeia a liderança.
Dizer a verdade ao poder, numa empresa, pode ser tão simples como apontar um defeito num produto que precisa de ser corrigido ou propor alternativas a processos que não fazem sentido, e tão delicado como questionar decisões que pareçam erradas ou denunciar uma cultura de liderança tóxica quando esta se instala. Quando uma organização afasta quem tem a coragem de agir com parrésia, está a criar uma cultura de medo que acabará por afastar as suas pessoas mais valiosas.
Cultivar uma cultura de dizer a verdade ao poder, pelo contrário, pode ser uma virtude essencial para resistirmos a pequenos e grandes desastres. Sempre que silenciarmos a nossa voz face a um erro, a uma injustiça ou a uma liderança tóxica, podemos estar a contribuir para que essa virtude se perca. Ainda assim, caberá sempre a cada um de nós decidir se, nas suas circunstâncias, é justo exigir essa coragem a si próprio.
* O “Terror ao Pequeno-Almoço – A Gestão que Preferia não Conhecer”