Opinião

Para todos os que nunca foram aplaudidos…

Susana Duro, Senior Marketing Manager na Coca-Cola Europacific Partners

Assisti recentemente à 10.ª Grande Conferência de Liderança Feminina. Durante algumas horas escutámos algumas mulheres e também alguns homens que partilharam um pouco da sua história, da sua experiência.

De alguma forma estas mulheres e estes homens chegaram a um patamar de sucesso e têm a oportunidade de ter um palco, de serem aplaudidos pelos seus feitos, de serem reconhecidos. E é espetacular que assim seja não só para eles, mas também para nós que assistimos e podemos aprender com a sua experiência e crescer enquanto profissionais e até enquanto pessoas.

Mas não consegui deixar de pensar nos milhares, milhões de mulheres e homens que todos os dias fazem feitos espetaculares e não têm, nunca tiveram e nunca terão nenhum palco onde possam ser aplaudidos. Nunca foram nem nunca serão reconhecidos. São vidas que começam e acabam no vazio do silêncio, mas que foram tão cheias…

Apenas uma pequena percentagem chega a cargos de liderança e nem todos temos de chegar, nem todos temos de ser executivos de sucesso, nem todos temos que ter um doutoramento, um mestrado ou até mesmo uma licenciatura. Mas a todos deveria ser dado o devido reconhecimento. É uma utopia querer isto? Pode ser, mas como está escrito no livro “Impossível”, de Tracey Corderoy e Tony Neal, que comprei para o meu filho, “Só é impossível se tu disseres que é…não podemos ao menos tentar?”.

O que quero dizer é que deveríamos alargar os nossos horizontes, ver além da definição de sucesso que nos impuseram. Afinal o que é ter sucesso?  Quantos de nós participam em webinars, conferências, workshops e tantas outras coisas? Uns à procura de mais conhecimento, de ensinamentos, outros de networking, mas temos tanto a aprender com quem está ao nosso lado e não nos cobra nada por isso!

Deveríamos escutar os ensinamentos do vendedor de castanhas que encontramos na esquina da nossa rua, do empregado do restaurante que nos serve o pequeno almoço, dos homens que diariamente recolhem o lixo, da cabeleireira que nos corta o cabelo, do mecânico que nos arranja o carro, da empregada do supermercado que regista as nossas compras, e de tantos outros que asseguram as bases da nossa existência. Mas segundo os parâmetros da nossa sociedade estes não são consideradas pessoas de sucesso.
Não fundaram um negócio inovador ou disruptivo, não são líderes em grandes empresas, não têm ensino superior, não têm uma rede de contatos interessante, então não têm nada para nos ensinar… e ainda à luz desta sociedade não têm porque não tiveram essa oportunidade ou então não lutaram o suficiente para a ter.

Mas há uma constatação muito importante que deveremos fazer: nem todos querem ter as mesmas oportunidades e não têm de querer… não podemos julgar o querer dos outros à semelhança do nosso. Já todos sabemos que por mais que se lute nem todos têm as mesmas oportunidades, e muitos há que vivem uma vida de frustração e revolta por não terem seguido o caminho que idealizaram. Mas também há quem nunca tenha procurado essa “oportunidade” porque simplesmente não quiseram.

O que quero dizer é que todos contam, todos fazemos parte desta equipa e cada um à sua maneira contribuiu para que esta funcione (claro que há exceções e alguns tiram mais do que dão, mas prefiro não entrar nesse caminho sob risco de me perder e desvirtuar a mensagem que gostava de passar).

A 6 de novembro a minha mãe faria 80 anos se fosse viva. Foi mais uma voz que viveu e morreu no silêncio e apenas vive na memória dos que tiveram a honra de a conhecer. Gostava de vos contar um pouco da história da minha mãe, a Maria Olinda e desta forma poder dar-lhe um pouco do palco e dos aplausos que nunca teve em vida.

A minha mãe nasceu numa pequena aldeia no concelho de Leiria no dia 6 de Novembro de 1943. Era a filha mais velha dos meus avós. A minha avó era analfabeta e o meu avô sabia ler e escrever o básico. A minha mãe estudou até à 4.ª classe como era tradição na aldeia, depois saiu para ajudar os pais em casa, na agricultura. O meu tio conseguiu ir para Leiria estudar e tirar um curso de contabilidade. Ninguém dedicava muito tempo a pensar neste tema da igualdade de oportunidades para os dois filhos, era assim e estava tudo certo. Nunca soube nem nunca saberei se a minha mãe teve o desejo de continuar a estudar ou se simplesmente seguiu o que estava instituído sem pensar muito no assunto.

Não sei como foi a infância da minha mãe, mas deduzo que não tenha sido nada fácil e que sempre tenha trabalhado muito. Aos 20 anos, numa festa da aldeia, conheceu o meu pai, que era de uma aldeia próxima e começaram a namorar por carta. O meu pai era emigrante em França e apenas vinha a Portugal uma vez por ano. Durante três anos trocaram cartas e em janeiro de 1967 casaram, passados nove meses nasce o meu irmão. O meu pai continuava em França, a minha mãe estava sozinha com o meu irmão e continuava a trabalhar com os meus avós.

Depois do 25 de Abril de 1974 o meu pai regressou a Portugal para uma família que mal conhecia. Depois de oito anos a viverem separados, a verdade é que eram todos estranhos. O meu irmão mal conhecia o meu pai e o meu pai não estava habituado a viver em família e em tudo o que isso implicava. Claro que a convivência não era nada fácil. Mesmo assim passados dois anos nasci eu. O meu pai tinha conseguido emprego numa fábrica e a minha mãe continuava a dedicar-se aos trabalhos domésticos, à agricultura e à pecuária. Do pouco que me lembro da minha infância, raramente via a minha mãe sentada a descansar. Trabalhava de manhã à noite tanto fora como dentro de casa e ainda ia ajudar os vizinhos.

Nunca passámos qualquer tipo de necessidade, mas a gestão financeira era bastante rígida e os gastos eram apenas para o essencial e pouco mais. O meu pai era bastante poupado e pedir-lhe dinheiro para algo extra era motivo de grande ansiedade. A minha mãe para conseguir ter alguma autonomia financeira decidiu criar o seu próprio negócio e começou a fazer bolos, tremoços e pevides para vender nas festas, para casamentos e aos sábados de porta em porta na aldeia. Esta nova função permitiu-lhe dar-nos (a mim e ao meu irmão) uns miminhos que de outra forma não teríamos. Os bolos da minha mãe eram maravilhosos, as saudades que eu tenho do cheiro enquanto coziam no forno, e tinham muita procura, mas na altura eu não conseguia ver nada disto. Na realidade eu sentia vergonha da “profissão” da minha mãe. Não gostava nada de a ver trabalhar na terra, de a ver a vender bolos de porta em porta. Eu era uma criança e pouco sabia da vida, mas ainda hoje sinto uma grande mágoa por não ter dado o valor que devia a esta GRANDE MULHER que nunca baixou os braços, que tinha sempre um sorriso, que estava sempre disposta a ajudar o próximo, que nunca dizia não a ninguém.

Nunca falei com a minha mãe sobre os seus sonhos, nem sei se os tinha. Sei que sempre fez tudo para nos dar o melhor que podia. A minha mãe teve uma vida muito difícil e dura, esteve num casamento onde não era feliz, mas nunca se separou. Era uma aldeia pequena e o casamento era para toda a vida. O divórcio era algo inimaginável. É muito fácil entrar em julgamentos e dizer que as pessoas têm de lutar para serem felizes, mas a verdade é que nem todos sentimos as coisas da mesma forma ou temos a mesma forma de ver o mundo. Isso não significa que uns estejam certos e outros errados. Na altura a minha mãe fez o melhor que pôde com o que tinha.

A minha mãe sempre lutou para que eu pudesse estudar e entrar para a universidade. E em setembro de 1995 eu entrei na Universidade em Lisboa e sei que isso a deixava muito orgulhosa. Eu fui a primeira da família a entrar para o ensino superior, a sair daquela pequena aldeia e a estudar na capital.

Nas férias do meu primeiro ano da universidade, no dia 26 de agosto de 1996, precisamente no dia do 7.º aniversário da morte da minha avó, da sua mãe… a minha mãe morreu, atropelada por uma carro de vacas. Eu estava com ela e assisti aquela cena tão horrível, tão macabra. Ainda hoje me questiono, porquê? Porque é que uma pessoa tão boa como a minha mãe tinha de ter um fim destes? Não bastou todo o sofrimento que teve? Fez-me pensar muito na justiça…mas a verdade é que não encontrei respostas e nunca irei encontrar. Há coisas que não têm explicação, acontecem porque sim.

A minha mãe deixou de existir, mas como li recentemente num texto da Elizabete Barbara:  “Nem sempre o que deixa de existir deixa de estar. Às vezes, deixar de existir é apenas outra forma de estar. É como a chuva. Ao parar de chover, a chuva deixa de existir como chuva, mas a sua água infiltrou-se nos campos e regou as flores e juntou-se ao leito dos rios como memória da chuva que um dia será novamente… O corpo das coisas que habitam o mundo pode morrer e pode desaparecer da nossa vista, mas nunca morrerá aquilo que nos habita e o coração …. Não faz mal que a chuva deixe de ser chuva quando permanece naquilo que regou”.

A minha mãe não foi uma mulher de sucesso, não criou ou descobriu nada inovador, não lançou nenhum negócio de sucesso, não foi uma artista, não deixou nenhuma marca na história, no entanto deixou-me a mim e a todos os que a conheceram a sua marca em tantos ensinamentos.

A minha mãe ensinou-me a ser generosa, dizia-me muitas vezes ,“Mão que não dais porque esperais? Ensinou-me a adaptar-me, dizia-me muitas vezes, “À terra onde fores ter, primeiro faz como vires fazer! Ensinou-me a agradecer, dizia-me muitas vezes, “Aquilo que é esquecido, não é dado nem agradecido! Ensinou-me a ser resiliente, a não desistir, a ser forte, dizia-me muitas vezes, “Viver não custa, custa é saber viver!

Ensinou-me tantas outras coisas que guardarei para sempre no meu coração! A minha mãe nunca teve um palco onde pudesse partilhar a sua experiência, as suas aprendizagens. Foi partilhando no grande palco da vida com todos os que se foram cruzando com ela. Nunca teve aplausos, mas também não os queria…o mais importante era ver as pessoas que amava felizes. Nunca foi reconhecida e também não o queria, mas eu reconheço-a agora pela grande mãe, filha, esposa, irmã, amiga, pela grande mulher que foi!

Para todas as mulheres e homens anónimos que todos os dias fazem feitos espetaculares o meu muito obrigada.


Susana Duro tem mais de 20 anos de experiência no desenvolvimento e implementação de estratégias de marketing para marcas líderes de mercado e um sólido percurso profissional construído em empresas nacionais e multinacionais de referência dentro do mercado de FMCG.

É licenciada em Marketing e Publicidade pelo IADE, pós-graduada em Retail Management e em Direção Comercial no Indeg/Iscte e mestre em Marketing pela mesma instituição. Iniciou a sua carreira de marketing na Henkel Ibérica como gestora de produto, passando depois para brand manager na Dan Cake. Em 2004 entrou para a Nestlé onde esteve durante 11 anos. Aqui desempenhou a função de brand manager da categoria de Culinários, de trade marketing manager na categoria de chocolates e de head of trade marketing na categoria de Cereais de pequeno-almoço. Em 2017 entrou para a Coca Cola Europacific Partners como responsável pela equipa de Customer Development do Canal Alimentar. Em 2022 foi convidada para assumir a função de National Account manager ficando com a responsabilidade de várias contas no canal Horeca Organizado.

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