Opinião
Os sonâmbulos

«O poder de se habituar ao seu ambiente é uma característica marcante da humanidade. Muito poucos de nós reconheceram com convicção a natureza intensamente insólita, instável, complexa, não fiável e temporária da organização económica na qual a Europa Ocidental viveu durante o último meio século.»
Estas são as duas primeiras frases de um dos mais lúcidos, contundentes e oportunos livros da história económica. É assustador reconhecer como o diagnóstico sinistro de 1919 se aplica a 2024.
John Maynard Keynes, no genial livrinho The Economic Consequences of the Peace, compreendeu que os horrores já vividos nos anos anteriores e aqueles que antecipava para o futuro próximo resultavam, em grande medida, da complacência, ligeireza e arrogância gerada nos líderes de então pela longa época de paz, estabilidade e prosperidade após 1870. «Assumimos as mais peculiares e temporárias vantagens recentes como naturais, permanentes e confiáveis, traçando os nossos planos em conformidade», continua o texto.
Todos os dirigentes hoje no ativo nasceram, cresceram e atuaram num mundo de paz e prosperidade, onde os temas económicos ocuparam o lugar supremo e o sucesso empresarial constituía a finalidade prioritária. Desde 1945, todos repetiram “nunca mais” à devastação que Keynes antevira e que precedeu a nossa era. Por isso, nos últimos 75 anos o mundo dedicou-se a fabricar produtos, criar tecnologias, vender e comprar bens, mergulhado no jogo económico. Apesar do estrépito mediático, todos sabiam que, no final, dominariam os interesses de consumidores e produtores.
Só que entretanto, tal como há 110 anos, esse panorama mudou radicalmente e, tal como há 110 anos, os dirigentes estão incapacitados para sequer compreender, quanto mais reagir ao novo ambiente. A causa é, mais uma vez, a assunção garantida de uma dinâmica económica que deixou de ser válida. O quadro pacífico da “guerra fria” e da globalização, que lhe seguiu, mesmo se realmente excelente para todos, em especial os mais pobres, constitui uma aberração histórica, que damos como permanente, mas que está serenamente a dissipar-se.
Em grande medida as causas da inversão, hoje como há 110 anos, estão ligadas ao sucesso produtivo das últimas décadas. Foi o desenvolvimento económico que gerou as perturbações climáticas que empurram essa dinâmica para segundo lugar. Até a emergência pandémica, origem da maior crise cíclica desde 1945, se deve aos contactos intercontinentais da globalização. Acima de tudo, a prosperidade, por grande que fosse, e foi, não satisfez toda gente. As críticas suscitaram radicalismo, nacionalismo, chauvinismo e revanchismo, um pouco por todo o planeta.
Esses, que desprezam o sistema atual e propõem a sua solução milagrosa, na extrema-direita ou na extrema-esquerda, fazem-no sempre em nome da prosperidade e da justiça, em 2024 como em 1919; e, tal como os vencedores do Tratado de Versalhes, que Keynes denunciou no seu manifesto, estão convencidos que conseguem a justiça e a paz castigando os que consideram malvados. O resultado é apenas fomentar a espiral de violência que acabará por destruir a prosperidade que se tem como garantida.
As queixas contra a injustiça, tacanhez e instabilidade da Belle Époque eram muitas em 1914 e 1919. Todos esse críticos vieram a chorar lágrimas de sangue com saudades dela, por terem dado crédito aos seus inimigos. Hoje as queixas sobem contra a ONU, a hegemonia americana e a odiada globalização, preparando um mundo sem as regras “injustas” dos últimos 75 anos, que será muito pior. A dinâmica económica relegara para teatros laterais ou subrogados o som das armas que “nunca mais” queríamos ouvir. Mas ele é crescentemente assumido, ou pelo menos considerado, nos principais centros de poder.
Quando o historiador australiano de Cambridge Sir Christopher Munro Clark escreveu o seu clássico de 2012 sobre as causas da Grande Guerra intitulou-o The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. Infelizmente a doença de sonambulismo está a crescer fortemente nos líderes da década de 2020.