Opinião
O poder “totalitário” das baixas qualificações

Há duas ou três ideias (pelo menos) relativamente consensuais em relação às qualificações em contexto profissional, a saber: que as qualificações são hoje essenciais para se singrar num percurso profissional com sucesso; que um dos problemas críticos das empresas em Portugal é o facto de terem muitos postos de trabalho ainda ocupados por pessoas de baixas qualificações; que a promoção de novas e melhores qualificações é uma das mais poderosas alavancas para o crescimento e desenvolvimento económicos do nosso país.
Apesar de ideias como estas serem, repito, relativamente consensuais no mundo das organizações, quando nos dedicamos a fazer uma análise mais profunda e crítica sobre as mesmas parece emergir uma conceção sobre as qualificações um pouco, digamos, sofisticada ou, no mínimo, intelectualizada.
Exemplo claro disso é o facto de estarem cada vez mais “na moda” as Escolas de Negócios, como entidades isoladas ou como extensões das Universidades, e serem também cada vez mais valorizados os cursos do tipo “Executive Masters”, MBA e outras variantes mais ou menos criativas que se afirmam no mercado com o propósito de “melhorarem as qualificações” dos profissionais de modo a que eles (ou elas) possam enfrentar com mais eficácia os difíceis e complexos desafios com que se confrontam, ou tendencialmente irão confrontar-se, na vida profissional.
Relativamente a isto, nada a obstar; muito pelo contrário, é de valorizar e apoiar estas e outras iniciativas que visam diretamente o desenvolvimento e melhor atualização de competências, nos profissionais ou nos jovens “aprendentes” que ainda lá não chegaram, adaptadas às complexidades do chamado “Mundo VUCA” ou, mais recentemente, do “Mundo BANI”.
No entanto, ao valorizar-se tanto esta conceção de “elevadas competências”, muito ligada a uma visão do conhecimento, chamemos-lhe novamente, mais “erudita”, por vezes esquecemos que, à medida que o Mundo se vai sofisticando tecnologicamente, há um conjunto mais restrito de outras profissões desempenhadas por pessoas que, embora sejam consideradas como tendo “baixas qualificações”, vão adquirindo uma importância cada vez maior na nossa vida quotidiana.
Refiro-me, a título de exemplo, a profissões tão tradicionais como pedreiros, carpinteiros, pintores (de construção civil, entenda-se) e aqueles outros profissionais que se deslocam às moradas das pessoas para coisas tão simples, como arranjar as portas de um armário, descaídas ou soltas com o uso, resolver problemas de canalizações, e muitas outras coisas que por vezes classificamos simplesmente como contrariedades que, no entanto, quando surgem, são coisas muito “chatas” e nos fazem gastar um tempo precioso em atividades que consideramos “menos nobres” e que não acrescentam valor ao exercício das tais nossas competências “sofisticadas”.
Pelo facto de estas profissões serem cada vez menos valorizadas socialmente, vão sendo desempenhadas por pessoas de baixas qualificações e mesmo de baixa literacia, cujo contacto social se torna por vezes difícil.
Mas o mais curioso de tudo isto é que, apesar dessa desvalorização social, nós estamos cada vez mais literalmente “nas mãos” desses profissionais que, muitas vezes, fazem o que querem e, sobretudo “quando” querem, assegurando que vêm num determinado dia, e depois não aparecem, prometendo que uma determinada obra fica pronta em X tempo e este (o tempo) vai crescendo e crescendo até ao limite daquilo que a nossa paciência conseguir tolerar. E se o cliente, usando da sua legitima prerrogativa de “entidade pagante”, protesta, o resultado…ainda é pior, havendo, todavia, um “alibi honroso” que é sempre invocado para justificar os atrasos, que, como é óbvio, descamba inevitavelmente na imputação de culpas a causas alheias.
Ao contrário do que possa parecer, este não é um “texto de protesto”. Pretende ser, isso sim, uma reflexão sobre a nossa classificação do que é ou não é uma “qualificação elevada” e sobre alguma tendência que temos para desvalorizar socialmente certas profissões que, embora nos prestem serviços que não têm um impacto direto nas nossas “cadeias de valor”, são, todavia, fundamentais para assegurar um bom “work/life balance” que, como vamos sentindo cada vez mais, é essencial para assegurar uma boa qualidade de vida.
Afinal, este tipo de profissões que funcionam com base em “mão de obra” pouco qualificada, estão consideradas como pertencendo à categoria dos “empregos com futuro”, porque uma das tendências de evolução do mercado de trabalho, de acordo com os prognósticos da “Quarta Revolução Industrial”, é justamente que, no futuro, mas também já no presente, as profissões que vão ter um maior desenvolvimento e empregabilidade serão aquelas que exigirão, sim, qualificações mais elevadas…mas também algumas outras que empregam profissionais de baixas qualificações.
Quem vai sofrer mais com isto são aquelas que se ficam pelas qualificações intermédias, os trabalhos medianamente qualificados, embora menos diferenciados, que podem ser mais facilmente substituídos pela proliferação das “máquinas inteligentes”.
Porque, no fundamental, a questão está, como sempre esteve, no valor de uso e na contribuição diferencial que cada profissional pode aportar.
E, sejamos claros, podemos até ser detentores de qualificações altamente sofisticadas; mas, se me perdoam o caráter talvez demasiado vernáculo do exemplo, o que se torna verdadeiramente penoso e que acaba por minar o nosso bem-estar pessoal e a nossa qualidade profissional, é, como aconteceu há pouco tempo com uma amiga minha, estar à espera cerca de dois meses para lhe implantarem a sanita numa casa de banho.
*Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas