Opinião

Youval Harari, que escreveu a triologia Sapiens, Homo Deus e 21 Lições Para o Século 21, baseia muitas das suas teorias em postulados simples. O mais original é que o Homem se organiza em sociedade pela aceitação de mitos que organizam e enquadram as suas relações ao criar uma base cultural comum, uma espécie de guião em que todos se reconhecem.
Estes mitos justificam o êxito da espécie ao permitir a colaboração entre os seus indivíduos e estão na raiz do desenvolvimento humano. Os exemplos são inúmeros. O mito de qualquer religião, por exemplo, a ideia que um ser superior cuja existência está por provar e cujas regras seguimos como se fossem suas quando, na realidade, são o produto da nossa imaginação. O mito da nação, como se a sua existência fosse uma decorrência da natureza, coincidindo dentro de fronteiras que a geologia não traçou e agrupando pessoas supostamente idênticas. Mas o mito que aqui me interessa é o mito do dinheiro.
Todos temos presente como na crise de 2011 nos foi imposta a ideia que o dinheiro tem existência própria e é finito, como os bens da natureza, a terra, a água ou o ar. E, por isso, não poderia gastar-se por não haver mais e por termos gasto para além das nossas possibilidades. Porém, a terra, a água e o ar não foram criados por nós e, por muito que queiramos, não conseguimos por mais água no mundo ou ar na atmosfera. Aumentar a Terra não está ao nosso alcance. Mas, cada vez que uma pessoa entra num banco e pede um crédito hipotecário, e este lhe é concedido, o banco cria dinheiro.
Hoje em dia, 97% do dinheiro existente é eletrónico, isto é, existe apenas na contabilidade das instituições financeiras. É o que acontece com um crédito hipotecário. O banco abre um crédito em favor do vendedor do imóvel, e um débito na conta do cliente a favor do banco. Criou dinheiro nesse ato. Outra forma de invenção de dinheiro que todos entendemos é quando os bancos centrais imprimem dinheiro. Quando, por exemplo, é impressa uma nota de 100 euros, o Banco de Portugal gasta apenas uns poucos cêntimos. Mas vende essa nota por 100 euros ao banco comercial que a recebe. E assim inventa 100 euros. Onde antes não havia dinheiro passa, pela impressão de um papel, a haver 100 euros.
A prova mais gritante de que há literalmente tanto dinheiro quanto aquele que convencionarmos existir e que, o dinheiro é um mito sem existência própria é a recente ideia – já antes debatida – da cunhagem de uma moeda em platina de 1 bilião (um milhão de milhões) de dólares pelo Governo dos Estados Unidos. Imediatamente após a sua cunhagem, o Governo depositaria essa moeda na Reserva Federal (o Banco Central americano) e a dívida do estado americano baixaria imediatamente em um bilião de dólares…surpreendido? Não fique, é a mais pura verdade, amplamente debatida nas páginas do New York Times por pessoas tão ilustres como Paul Krugman.
Já agora, teria que ser em platina porque o Tesouro só pode imprimir dinheiro em ouro, prata ou papel com autorização da Reserva Federal, que controla o montante de dinheiro em circulação. Mas, por uma lei que permite ao Governo americano cunhar moedas comemorativas em platina, seria legal que este mandasse cunhar uma moeda de um bilião de dólares em platina que teria a validade de circulação necessária para que a Reserva Federal fosse obrigada a aceitá-la em depósito. E paf! Uma só moeda apaga um bilião de dívida. O dinheiro é, pois, uma convenção, não uma realidade física finita.
Quando o dinheiro deixa de facilitar a nossa existência e de nos ajudar a criar e progredir perde a utilidade mítica que Harari lhe atribuiu e adquire existência própria, aquela que nenhum mito é suposto possuir. Tal como fanáticos religiosos pelo seu deus ou nacionalistas pela sua pátria, os donos do dinheiro querem convencer-nos da sua existência real por forma a controlar a quantidade que nos disponibilizam e assim manterem para si próprios a quantidade que lhes assegura poder e privilégio. Felizmente, porém, vamos aprendendo que, afinal, mitos são mitos e que apenas quem quer segue os seus preceitos.