Opinião

O livro, o telégrafo e o ecrã

Ricardo Tomé, diretor-coordenador da Media Capital Digital

Os dados são reveladores: em 1997 em Portugal 53,4% dos portugueses liam livros; em 2007 esse valor subiu para 56,9%; no caso dos jornais a subida foi ainda mais expressiva, de 69,4% para 83% (Estudo “A Leitura em Portugal” pelo Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação – Out. 2007).

Em 2022, os números mostram que apenas 39% leram livros e 33% leram sites de notícias (Inquérito nacional conduzido pela Fundação Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, do mesmo ano).

É uma queda de quase 18 pontos percentuais em apenas 15 anos (!). Estamos a falar do período em que a televisão por cabo se massificou até 97% da população (Anacom, 2023), as redes sociais se impregnaram nos hábitos diários de 5,5M de portugueses  (Marktest, Os Portugueses e as Redes Sociais, 2023), o streaming veio para ficar, com 25% dos portugueses com acesso a pelo menos um serviço, ou seja 2,5M de pessoas (3.ª vaga do barómetro Marktest de 2023) e o smartphone está hoje na mão de todos (concordarão que neste ponto não será necessário qualquer estudo…).

Quem já leu “Amusing Ourselves to Death”, de Neil Postman, já mergulhou nesta transformação ocorrida a partir da invenção do Telégrafo por Samuel Morse em 1837 e que transformou a partilha de informação, até aí na sua forma escrita densa nos temas em jeito de exposição e reflexão, para ser atacada pela abreviação do telégrafo, que passaria a trazer para o dia a dia o que se passava na corte de um qualquer reinado a milhares de quilómetros, o sismo algures no planeta, ou a efeméride da cidade ao lado, como factos a relatar de súbito tão ou mais prementes ainda que sem sentido útil para quem lia.

Mas a aceleração dá-se no séc.XX com a espetacular ascensão da cultura da imagem, alimentada pela televisão. Acresce a essa comunicação vídeo o surgimento na internet e a sua adoção em massas no séc.XXI, com a disseminação de muitos para muitos. A história fica completa.

Os ritmos de vida, a explosão de estímulos por todo o lado, tanta coisa para ver e fazer… Não admira que muitos jovens para acelerar e poderem consumir o máximo de conteúdos adiram às práticas de ver e ouvir um episódio ou filme ou podcast em modo 1,5X, ou fazendo skip constante de 10 segundos nas partes mais demoradas.

Mas se do lado dos índices de leitura os dados são estes, a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) partilhou um crescimento nas vendas (faturação) de 5% em 2023, depois de em 2022 ter crescido 15% e em 2021 16% – mas relembremos que na pandemia caíra 17% e em 2019 o mercado estava estagnado, a crescer apenas 1%. Nas conclusões da APEL o crescimento que vem pelo maior número de títulos (fiz as contas e os 18M de livros vendidos representam um preço médio de 14,30€) deve-se aos jovens na ficção e aos pais na compra de livros infantis. O fenómeno de Word-of-Mouth marketing e Earned-Media nas redes sociais explica sobretudo o primeiro. Boas notícias. Mas não chega.

A reflexão é premente: parece que o futuro da leitura não pode ignorar o papel certamente, mas tem de passar a incluir também os ecrãs. Numa lógica de marketing digital: “fish where fish are”, se o mercado de leitores está nos telemóveis e em 3 outros ecrãs (computador, televisor e tablet), querer manter a leitura de livros agarrada apenas ao formato papel pode ser um mau princípio da indústria no longo prazo.

Relembremos que apesar do crescimento na faturação referido acima, estamos a falar de 18M de livros/ano; ora descontando 950.000 pessoas até aos 6 anos de idade, restam-nos 9M de residentes, o que dá 2 livros lidos por ano em média…

Os formatos digitais como o Kindle da Amazon ou outros vão fazendo algum caminho, mas são ainda casos isolados (com limitações na oferta e preço). Algumas apps vão explorando a ideia, como a Imprint, que oferece resumo de livros em várias temáticas. Mas ao contrário da música, em que parte do negócio vive da escuta e outra metade dos eventos/concertos e merchandising, nos livros o modelo parece continuar exíguo e centrado na venda do exemplar.

Se não potenciarmos um contexto “flywheel” em que seja atrativo aos autores escrever, dedicarão e encaminharão o seu talento para outras artes onde obtêm mais atenção potencial. Sem autores, viver das velhas glórias do século passado e dos clássicos e de rostos famosos e suas biografias será muito curto para manter atrativo um território criativo que qualquer dia se parecerá mais com o da música clássica, hoje apenas vivendo das inúmeras versões de Bach, Beethoven, Mozart e tantos outros, e menos de contemporâneos, relegados a nichos saudosistas e/ou hiperespecializados.

A escrita gera obras incopiáveis e irreplicáveis noutras formas. Pela sua demora do pensamento. Pela densidade e duração. Pela revisão e reescrita. Pelo tempo que muitas vezes ele mesmo parece amadurecer ou afogar uma obra e fazê-la definhar ou crescer pelo passa-a-palavra.

Das histórias em versão curta no TikTok, Instagram ou Youtube, à imagética na Tv e no streaming, há espaço para a longa-duração da escrita, consiga ela encontrar espaço no contexto de ferramentas de acesso dos tempos que aí vêm.

Acreditar que os escritores persistirão só porque lhes é “natural” escrever, independentemente se alguém os irá ler ou não, parece-me uma ilusão. Pode haver quem escreva só para si, mas querer fazer depender todo o universo literário desses, apenas será um capítulo fatídico.

Como leitor assíduo, vou notando os preços subir, as obras em inglês compradas online cada vez mais como opção principal, e em volta uma comunidade de familiares, conhecidos, amigos e profissionais que embora gostando de ler encontram no contexto de hábitos atual uma desadequação.

É como se em 2024 ainda disséssemos ao mundo que para ouvir música teríamos de continuar a comprar CD’s ou bilhetes para concertos, sem opção – não alternativa, mas principal – que passasse pelos dispositivos digitais.

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Ricardo Tomé

Ricardo Tomé

Ricardo Tomé é Diretor-Coordenador da Media Capital Digital, empresa do grupo que gere a estratégia e operação interativa para as várias marcas – TVI, TVI24, IOL, MaisFutebol, AutoPortal, etc. – com foco especial na área mobile (Rising Star, MasterChef, SecretStory) e Over-The-Top (TVI Player), bem como ativação de conteúdos multiscreen em todas as plataformas e realizando igualmente a ponte com o grupo PRISA nas várias parcerias: Google & YouTube, Facebook, Twitter, Endemol, Shine, entre outras. Foi, até 2013, coordenador da... Ler Mais..

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