Entrevista/ “Num mundo mais tecnológico, é a empatia que nos torna verdadeiramente humanos”

Filipa Lemos Cristina, cofundadora da PowerUP, acredita que a empatia é uma competência estratégica capaz de transformar culturas, equipas e resultados. Foi essa convicção que a levou a criar o whitepaper “Liderança Empática”, em colaboração com líderes da L’Oréal, Microsoft e do Doutor Finanças. O documento desafia a ideia de que a empatia é uma “soft skill” e mostra o seu impacto direto no desempenho organizacional.
Num contexto pós-pandémico, marcado por burnout, rotatividade de talento e exigências emocionais cada vez maiores, a empatia surge como resposta concreta e eficaz para os desafios de liderança. Foi dessa constatação – e da convicção pessoal de que liderar com empatia é um ato de coragem e estratégia – que nasceu o whitepaper “Liderança Empática”. Um projeto colaborativo entre a PowerUP e líderes de três empresas – L’Oréal, Microsoft e Doutor Finanças – que mostra que, com dados e experiências reais, a empatia é um verdadeiro motor de transformação, inovação e bem-estar.
Nesta entrevista, Filipa Lemos Cristina partilha como surgiu a ideia de criar este whitepaper, os insights mais marcantes e a ambição de tornar a empatia numa vantagem competitiva no mundo do trabalho.
O Whitepaper sobre Liderança Empática resulta de uma colaboração entre organizações muito distintas. Como surgiu esta ideia e que motivações estiveram na base da sua criação?
A ideia do whitepaper nasceu da convicção profunda de que as competências humanas, como a empatia, não são um “nice to have”, mas um verdadeiro motor de transformação organizacional. Foi algo que pude ver – e sentir – ao longo da minha própria carreira. Este tema tornou-se ainda mais urgente num contexto pós-pandemia, onde o burnout e os desafios à fidelização de talento se tornaram evidentes – seja por uma reavaliação de valores pessoais, seja por questões geracionais que vieram alterar expectativas e relações de trabalho.
Enquanto escrevia o whitepaper, e mesmo tendo consultado muita literatura, percebi que fazia sentido trazer outras vozes, outras perspetivas – independentemente do setor. Queria ouvir pessoas para quem a empatia já fosse um fator crítico de sucesso no dia a dia. Porque a empatia é transversal, aplicável e, sobretudo, eficaz.
“A neurociência mostra-nos que a empatia é treinável: quanto mais a ativamos, mais oxitocina libertamos, e isso fortalece os laços de confiança dentro das equipas”.
No whitepaper defende-se que a empatia é um fator crítico de sucesso nas organizações. Como é que a empatia, tantas vezes vista como uma “soft skill”, pode realmente transformar equipas e impactar resultados financeiros?
A empatia começa por criar segurança psicológica – e esse é o alicerce de qualquer equipa de alto desempenho. A neurociência mostra-nos que a empatia é treinável: quanto mais a ativamos, mais oxitocina libertamos, e isso fortalece os laços de confiança dentro das equipas. E onde há confiança, há mais colaboração, mais abertura e mais eficácia na resolução de problemas. Quando isto acontece, a empatia deixa de ser vista como uma “soft skill” – e passa a ser uma core skill. Porque melhora diretamente a comunicação, o engagement e a coesão. E isso tem um reflexo direto nos resultados. As equipas tornam-se mais conectadas, mais ágeis e mais orientadas para soluções – e isso traduz-se em desempenho financeiro.
Aliás, não são só perceções: os dados confirmam isto mesmo. Um estudo da Catalyst (The Power of Empathy in Times of Crisis, 2021) com mais de 800 funcionários mostrou que colaboradores que experienciam empatia nos seus líderes são: 5 vezes mais propensos a relatar que estão engajados no trabalho; 4 vezes mais propensos a inovar; 3 vezes mais propensos a afirmar que o seu local de trabalho é inclusivo.
Outro dado importante: segundo a Gallup (State of the Global Workplace, 2021), empresas com altos níveis de engagement (onde a empatia tem um papel determinante) têm 21% mais rentabilidade e 17% mais produtividade. Portanto, a empatia não é só “bonitinha” – é eficaz. É estratégica. É um investimento inteligente. Antigamente chamávamos a estas competências de “soft”, como se fossem opcionais, fofinhas ou pouco robustas. Mas num mundo cada vez mais tecnológico, são precisamente estas competências humanas que fazem – e vão continuar a fazer – toda a diferença para o sucesso pessoal e organizacional, no mundo cada vez mais tecnológico.
“Quando uma liderança atua com empatia, está a enviar ao cérebro dos outros um sinal de segurança”.
De que forma a neurociência sustenta a importância da empatia na liderança?
O nosso cérebro está programado para procurar segurança. A sua principal função continua a ser garantir a sobrevivência – e para isso, está constantemente a avaliar riscos no ambiente e nas relações. Cada interação é, do ponto de vista neurobiológico, interpretada como uma potencial ameaça ou uma oportunidade de conexão. Quando uma liderança atua com empatia, está a enviar ao cérebro dos outros um sinal de segurança. E, quando nos sentimos seguros, deixamos de ativar os circuitos do medo (ligados ao cortisol) e passamos a ativar circuitos associados à confiança e à colaboração – nomeadamente através da libertação de oxitocina, o neuroquímico do vínculo.
Segundo a neurociência, a oxitocina não apenas fortalece as relações sociais, como também contribui para um ambiente de segurança psicológica, essencial para o desempenho de equipas. E esse ambiente não surge por acaso: ele é criado, entre outras coisas, por líderes empáticos que sabem ouvir, validar e ajustar as suas ações às necessidades emocionais dos outros.
Mais importante ainda: a empatia pode ser treinada. Nós temos neuroplasticidade e isso significa que, com práticas consistentes, conseguimos fortalecer os circuitos neuronais ligados à empatia. Isso aplica-se mesmo em contextos de alta pressão, onde a tendência natural seria ativar o sistema de ameaça. Portanto, liderar com empatia é também um ato neurobiológico: é criar condições para que o cérebro de todos na equipa funcione em modo de cooperação em vez de sobrevivência. E isso muda tudo – desde a qualidade das decisões até à inovação e ao bem-estar coletivo.
Este documento foi construído com o contributo de líderes da L’Oréal, Doutor Finanças e Microsoft. O que foi mais surpreendente ou inspirador nestas partilhas?
O mais inspirador foi perceber que, independentemente do segmento ou setor, estamos sempre a falar de pessoas. Os segmentos servem apenas como uma classificação – mas no fundo, os desafios de liderança, conexão e empatia são universais. Foi especialmente marcante ver como líderes de áreas tão distintas – da tecnologia à cosmética, passando pelas finanças – enfrentam dilemas semelhantes quando se trata de liderar com humanidade. Todos partilharam momentos de viragem em que a empatia fez a diferença: na forma como escutaram uma equipa em crise, como lidaram com decisões difíceis, ou como abriram espaço para conversas mais honestas.
A Sara Silva, diretora de Recursos Humanos da L’Oréal Portugal, trouxe uma reflexão muito poderosa sobre vulnerabilidade e escuta ativa, uma vez que contacta diretamente com uma cultura organizacional muito inclusiva e empática como é a da L’Oréal, onde os colaboradores são um dos pilares da construção de ambientes de trabalho saudáveis. A Mariana, Retail Industry Advisor da Microsoft, destacou o papel da empatia na criação de equipas híbridas mais ligadas; e o Rui, Chairman e Founder do Doutor Finanças, partilhou como é possível conjugar empatia com exigência – e ainda assim tomar decisões justas e humanas. Essas partilhas foram feitas com abertura e autenticidade. E isso, para mim, é o maior sinal de liderança empática em ação.
Como foi o processo colaborativo entre estas entidades?
Quando percebi que fazia sentido trazer outras vozes para este whitepaper, fui naturalmente identificando pessoas que já admirava – e que sentia estarem alinhadas com esta visão de liderança empática. A Sara era alguém que conhecia apenas um pouco, mas a minha intuição dizia-me que falar sobre vulnerabilidade era com ela. A Mariana, por sua vez, já a conhecia há alguns meses e sempre foi uma pessoa acessível, generosa e com uma visão humana muito clara. O Rui era o único que ainda não conhecia pessoalmente, mas tudo o que via dele – nas redes, nos testemunhos de quem já tinha trabalhado com ele – deixava-me convicta de que era a pessoa certa para escrever o prefácio.
Falei com cada um deles e todos aceitaram de imediato. A partir daí, o processo foi verdadeiramente colaborativo. A Sara cocriou o evento de lançamento comigo, o que foi fantástico dado que contámos com o apoio da L’Oréal para o realizar, fruto do alinhamento da marca com uma postura que coloca o bem-estar das pessoas no centro da sua missão e que, portanto, está alinhada com a cultura e os valores que este whitepaper apresenta. A Mariana esteve sempre disponível, ajudando com vários detalhes ao longo do caminho. E os três marcaram presença no evento, com generosidade e envolvimento. Mais do que uma colaboração entre entidades, foi uma colaboração entre pessoas. E é isso que torna este projeto tão especial.
“Após trabalharmos as competências humanas – com foco na empatia – os próprios líderes reportaram mudanças claras”.
Pode partilhar um exemplo concreto em que uma liderança empática tenha produzido uma transformação real dentro de uma equipa ou organização?
Sim. Num dos nossos projetos da powerUP, com uma equipa de uma empresa com quem colaboramos, observámos inicialmente um contexto de pouca colaboração, desconfiança e baixa autonomia. Após trabalharmos as competências humanas – com foco na empatia – os próprios líderes reportaram mudanças claras: mais coesão, decisões partilhadas e até melhorias nos indicadores de performance e satisfação interna. Quando a liderança muda a forma como ouve e responde às pessoas, todo o sistema se transforma.
A empatia pode ser desenvolvida ou é algo inato nos líderes?
Todas as competências humanas, incluindo a empatia, podem ser desenvolvidas, a não ser que exista alguma patologia que o impeça. Não há competências exclusivamente inatas – todas podem ser treinadas e fortalecidas, graças à nossa neuroplasticidade. Aliás, é exatamente isso que fazemos na PowerUP: ajudamos pessoas de diferentes equipas a medir, ativar e sustentar estas competências através de metodologias científicas, com base na neurociência e na aprendizagem ativa.
Qual foi o papel da Power UP neste projeto e de que forma esta iniciativa se enquadra no propósito da empresa?
A iniciativa de escrever este projeto partiu de mim, porque está profundamente ligada à minha história de vida – ao que vi, vivi e senti, em contextos muito diferentes, sobre o impacto que a empatia (ou a ausência dela) pode ter nas pessoas e nas organizações. Partilhar este whitepaper com outras pessoas que pensam da mesma forma foi uma forma de dar voz a uma competência que tantas vezes é desvalorizada. Quisemos desmistificar a empatia – mostrar que não é uma fraqueza, nem um luxo, mas sim um fator crítico de sucesso que pode ser treinado, medido e sustentado.
Esta iniciativa enquadra-se totalmente no propósito da PowerUP. O nosso why é ajudar empresas e equipas a ativar o que têm de mais humano – e fazer disso uma vantagem competitiva. Acreditamos que as competências humanas, quando trabalhadas com base em ciência, são um dos maiores motores de produtividade, fidelização de talento e sustentabilidade organizacional.
Este whitepaper é um reflexo direto desse propósito: queremos levar mais ciência e mais impacto à forma como desenvolvemos as pessoas nas organizações (tenham elas a função que tiverem). E acreditamos – com dados e experiências reais – que a liderança empática é o caminho para equipas mais saudáveis, organizações mais eficazes e uma cultura de trabalho mais consciente.
“Esperamos que este trabalho influencie a forma como se pensa a avaliação de desempenho, as políticas de bem-estar e a gestão de equipa (…)”.
De que forma esperam que este whitepaper influencie outras organizações ou líderes?
Queremos que este whitepaper sirva como um convite à reflexão – mas também à ação. Que ajude líderes a perceber que é possível desenvolver competências humanas de forma estruturada, mensurável e com impacto real nas equipas e nos resultados. Esperamos que este trabalho influencie a forma como se pensa a avaliação de desempenho, as políticas de bem-estar e a gestão de equipas – seja qual for a equipa ou setor. E, acima de tudo, que ajude a normalizar a empatia como um fator de sucesso – não apenas moral, mas estratégico.
Temos e devemos olhar para os indicadores financeiros como o EBITDA, o lucro, a margem, no entanto, o nosso convite é complementar essa visão com outro tipo de métricas – que nos ajudem a perceber o que realmente sustenta os resultados ao longo do tempo: as competências humanas. Porque são fatores que fazem as equipas crescer – e as empresas prosperar de forma mais humana e sustentável, e com maior performance.
Estão a pensar levar esta discussão mais longe, talvez com formações, estudos de caso ou uma segunda edição?
Sim, o whitepaper é só o início. Já temos previsto um ciclo de PowerTalks e workshops para organizações que queiram aprofundar o tema. Também planeamos fazer um estudo de caso sobre este evento, e no 2º semestre fazer o lançamento deste whitepaper em inglês, juntando outras vozes ao tema da empatia. Aqui uma das entidades com quem iremos co-criar um 2º evento será a Fábrica dos Unicórnios, onde estamos a incubar.
O que aprendeu pessoalmente ao escrever este whitepaper? Houve alguma ideia que tenha mudado a sua forma de ver ou praticar liderança?
Aprendi que a empatia começa dentro de nós. Não podemos liderar com empatia se não praticarmos, primeiro, a escuta interna, o autoconhecimento e a compaixão por nós mesmos. Percebi também que a empatia não é um ato isolado – é uma cultura, um modo de estar, algo que se cultiva com consistência. E sim, mudou a minha forma de liderar. Hoje dou mais espaço às perguntas do que às respostas. Ouço com mais intenção quem me rodeia. Peço mais colaboração. Confio mais no processo coletivo, seja pessoalmente ou profissionalmente.É um caminho contínuo – não se trata de “chegar lá”, mas de praticar todos os dias. Porque é nas perguntas certas que começa a verdadeira transformação.