Entrevista/ “O legado deve funcionar como bússola, não como âncora”

Filipe Bergaña, fundador da Audaz Capital

Filipe Bergaña, fundador da Audaz Capital, quer “dar continuidade a negócios que já provaram o seu valor ao longo dos anos”. Com mais de 20 anos de experiência nos mercados financeiros internacionais e uma herança familiar de várias gerações de empresários, acredita que é possível preservar o legado de negócios sólidos, combinando continuidade e profissionalização, sem sacrificar cultura e identidade.

Filho de pai espanhol e mãe portuguesa, Filipe Bergaña cresceu no seio de famílias de empresários, onde aprendeu que o verdadeiro valor de uma empresa vai muito além dos números: reside na forma como é gerida, respeitada e vivida. Essa filosofia inspira hoje a Audaz Capital, que se propõe a ser a “terceira via” para PME ibéricas bem-sucedidas, ou seja, uma alternativa à venda a concorrentes ou fundos de private equity, oferecendo continuidade com liderança ativa, governança estruturada e crescimento sustentável.

Em entrevista ao Link to Leaders, o responsável explica como a experiência internacional e a vivência familiar moldaram a sua visão de investimento, os critérios que guiam a seleção de empresas e o impacto que pretende gerar nas organizações e nas comunidades onde atua.

Cresceu numa família com várias gerações de empresários. Como esta vivência influenciou a criação da Audaz Capital?

Cresci no meio de conversas sobre clientes que voltam porque confiam, fornecedores que são tratados como parte da casa, e equipas que dão sempre mais quando sentem que fazem parte de algo com sentido. O meu avô, galego, veio para Lisboa depois da guerra e abriu marisqueiras – como tantos conterrâneos – que ainda hoje são conhecidas. Os meus pais, com um espírito profundamente pioneiro, trouxeram de Paris o conceito de boutique de moda feminina, numa altura em que o retalho em Portugal era muito pouco sofisticado.

Essas histórias moldaram a minha forma de ver o que é uma boa empresa. Ensinaram-me que crescer com solidez é mais importante do que crescer depressa, e que o valor de uma empresa está tanto nos números como na forma como ela é gerida, respeitada e vivida. A Audaz nasceu desse olhar: quero dar continuidade a negócios que já provaram o seu valor ao longo dos anos, respeitando o que foi construído, mas ajudando também a prepará-los para os próximos desafios. Não se trata de reinventar, mas de dar continuidade com propósito e ambição.

“A oportunidade que vimos foi criar uma solução de continuidade: comprar para liderar, mantendo marca, equipa e relações comerciais, mas introduzindo processos (…)”.

A Audaz Capital surge de uma constatação sobre empresas familiares sem sucessores. Pode explicar-nos que oportunidade encontrou nesse contexto?

Há centenas de PME ibéricas, bem geridas e lucrativas, que chegaram a um ponto crítico: o fundador quer passar o testemunho, mas muitas vezes não tem sucessores ou a família não quer ou não pode assumir o comando. A alternativa tradicional é vender ao concorrente ou a um fundo de private equity, o que frequentemente implica integração, perda de identidade e/ou pressão por metas de curto prazo. A oportunidade que vimos foi criar uma solução de continuidade: comprar para liderar, mantendo marca, equipa e relações comerciais, mas introduzindo processos, tecnologia e governance onde estes faltam. Esta abordagem protege clientes e trabalhadores, reduz a incerteza para o vendedor e preserva o valor construído ao longo de décadas.

Com mais de 20 anos nos mercados financeiros internacionais, como é que essa experiência o preparou para liderar um projeto focado em empresas familiares?

Passei duas décadas a analisar modelos de negócio, avaliar equipas de gestão e a decidir onde colocar capital com base em disciplina e evidência. Aprendi a ler contas com rigor, a diferenciar crescimento saudável de mera expansão e a identificar riscos antes de eles se materializarem. Mais importante, aprendi a ouvir: gestores, clientes, concorrentes e fornecedores. Na Audaz, essa escola traduz-se na resiliência operacional, na qualidade das receitas e foco na geração de caixa. O que muda é que agora não fico na bancada a comentar. Entro em campo, assumo responsabilidade executiva e coloco a minha reputação ao lado de colaboradores e parceiros.

Que lições retirou das empresas que acompanhou e que aplica hoje na Audaz?

Três lições orientam o nosso playbook. Primeiro, profissionalizar cedo: relatórios simples e fiáveis, reuniões de negócio com cadência, indicadores que todos entendem. Segundo, digitalizar com pragmatismo: CRM e ERP básicos bem implementados valem mais do que grandes promessas tecnológicas sem adopção. Terceiro, crescer de forma adjacente: vender mais aos clientes atuais, expandir para geografias onde já há prova de produto e, só depois, novas linhas. Espere… acrescento uma quarta: cultura e incentivos. Sem planos de carreira, partilha de objetivos e meritocracia, a estratégia fica no papel. É este conjunto que transforma uma boa PME numa empresa excelente.

“Não procuramos sinergias de corte ou uma rotação rápida do ativo. Procuramos continuidade com ambição: manter o que funciona (…)”.

Muitas empresas familiares têm duas opções: vender a concorrentes ou a fundos de private equity. Qual é a “terceira via” que a Audaz propõe?

A terceira via é a do investidor-gestor que compra para ficar e liderar. Não procuramos sinergias de corte ou uma rotação rápida do ativo. Procuramos continuidade com ambição: manter o que funciona, reforçar a equipa e investir na capacidade de executar. Isto é particularmente relevante quando a marca e as relações de longo prazo são o coração do negócio. Ao invés de absorver a empresa num grupo maior ou sujeitá-la a metas de desinvestimento pré-definidas, criamos um plano a 7-10 anos, com marcos claros e criação de valor repartida por todos os stakeholders.

Pode explicar o conceito de “investidor-gestor”? Como equilibram continuidade e transformação sem desrespeitar o legado da empresa?

Investidor-gestor significa que o comprador é também o responsável diário pela execução. Garante uma transição serena, trabalha lado a lado com as pessoas que conhecem o negócio e toma decisões com a humildade de quem está a aprender e a liderar ao mesmo tempo. O equilíbrio faz-se em três tempos: primeiro, ouvir e mapear o que a empresa tem de melhor; segundo, estabilizar processos críticos e proteger clientes e talento; terceiro, introduzir mudanças graduais e mensuráveis, comunicadas com transparência. O ritmo é o do negócio, não o do calendário financeiro. O legado deve funcionar como bússola, não como âncora.

Quais os principais critérios que a Audaz utiliza para selecionar empresas?

Procuramos empresas em setores não sujeitos a disrução tecnológica rápida, com procura estável e barreiras de entrada práticas, como relações comerciais, certificações, logística ou know-how específico. Valorizamos receitas recorrentes ou repetidas, baixa concentração de clientes e fornecedores, margens saudáveis e conversão de EBITDA em caixa. Em termos de dimensão, tipicamente €10–30 milhões de volume de negócios e €1–5 milhões de EBITDA, o que permite governabilidade e espaço para a profissionalização. A cultura pesa tanto como os números: ética, cuidado com clientes e respeito pelas pessoas são critérios de investimento.

Como funciona o processo de aquisição via proprietary search e através de intermediários?

Trabalhamos em duas áreas. Na pesquisa própria, estudamos verticais, identificamos empresas com bom encaixe e contactamos diretamente os proprietários com total discrição. É um processo mais demorado, mas permite diálogo franco sobre sucessão e alinhamento de valores. Em paralelo, colaboramos com intermediários credenciados – bancos de investimento, boutiques e consultores – que trazem processos estruturados e documentação completa. Em ambos os casos, o que diferencia a Audaz é a proposta de continuidade com liderança executiva e um plano de criação de valor partilhado com as equipas.

“Quando uma PME se torna mais robusta, toda a cadeia ganha: fornecedores locais, clientes que dependem do serviço e comunidades (…)”.

Que tipo de impacto pretendem gerar nas empresas investidas e nas comunidades onde atuam?

Queremos empresas mais previsíveis e com melhores perspectivas. Isso traduz-se em três frentes: operacional, financeira e humana. Operacionalmente, melhorar serviço, qualidade e produtividade. Financeiramente, otimizar capital circulante, reduzir desperdício e investir com retorno claro. Na vertente humana, desenvolver liderança intermédia, planos de carreira e mecanismos de partilha de sucesso. Quando uma PME se torna mais robusta, toda a cadeia ganha: fornecedores locais, clientes que dependem do serviço e comunidades onde o emprego é determinante.

Quem são os investidores que apoiam a Audaz Capital e que valor acrescentam além do capital financeiro?

Reunimos uma base diversificada de capital de longo prazo: investidores institucionais, family offices e empresários que conhecem por dentro o ciclo de vida das PME. Além do financiamento, trazem governance exigente, acesso a talento, referências de clientes e fornecedores e um sounding board experiente para decisões estratégicas. Vários já lideraram processos de sucessão ou internacionalização e partilham práticas que evitam erros comuns. Esta combinação de capital e conhecimento aumenta a probabilidade de execução bem-sucedida nos primeiros dois anos, que são críticos.

Qual é o montante inicial disponível para investimento e planeiam reforços futuros caso surjam oportunidades de expansão ou aquisição?

Posicionamo-nos para transações com valor de empresa na ordem dos 10–30 milhões de euros, combinando capital próprio com dívida bancária prudente e, quando adequado, mecanismos de vendor financing. O desenho financeiro é consequência da tese, não o contrário: preferimos menos alavancagem e mais margem de manobra para investir em pessoas, sistemas e capacidade produtiva. Se a empresa justificar um plano de expansão orgânica ou aquisições complementares, temos flexibilidade para reforçar capital com os nossos investidores, mantendo sempre disciplina na avaliação de risco-retorno.

“Quando a sucessão não é preparada, perde-se valor e criam-se incertezas desnecessárias para trabalhadores e clientes”.

Por que existem tantas empresas familiares sem sucessor em Portugal?

Convergem três fatores. A demografia: muitos fundadores aproximam-se da reforma e os herdeiros seguiram outras carreiras. A complexidade crescente da gestão: as exigências de compliance, a digitalização e a gestão de talento tornaram o papel do CEO mais complexo do que há 20 anos. E a falta de planeamento de sucessão com antecedência suficiente. Isto não é um falhanço; é uma realidade estrutural que pede soluções profissionais e respeitosas. Quando a sucessão não é preparada, perde-se valor e criam-se incertezas desnecessárias para trabalhadores e clientes.

Qual considera ser o maior desafio que estas empresas enfrentam atualmente em termos de sucessão e profissionalização?

Transformar conhecimento tácito em processos explícitos. Em muitas PME, a informação crítica vive na cabeça de duas ou três pessoas e em folhas de cálculo dispersas. O desafio é construir um sistema operativo de gestão simples, com rotinas, métricas e responsabilidades claras, que não dependa de heróis. Isto exige tempo, formação e uma liderança que dê o exemplo. A boa notícia é que, quando se acerta neste ponto, o impacto na qualidade de serviço, na rentabilidade e na capacidade de crescer é imediato.

Pode partilhar exemplos de empresas portuguesas que se reinventaram com sucesso? Que lições podem tirar-se destes casos?

A Amorim demonstra como a inovação contínua e a integração vertical podem criar liderança mundial num sector tradicional. A Delta Cafés ilustra a força de uma cultura de serviço e da construção de marca ao longo de décadas. Há outros casos, em cerâmica, têxtil técnico ou calçado, que mostram o poder de investir em design, automação e internacionalização. A lição transversal é clara: excelência operacional e ambição paciente geram vantagens competitivas duradouras. É esse espírito que procuramos preservar e escalar quando entramos numa empresa.

Como vê a evolução da Audaz Capital nos próximos anos em Portugal e Espanha?

O projeto é ibérico por desenho. Espanha oferece escala e diversidade setorial; Portugal oferece proximidade cultural, talento e clusters industriais muito competentes. Nos próximos anos, ambicionamos concluir a nossa primeira aquisição e, a partir daí, executar um plano claro de crescimento orgânico e, quando fizer sentido, add-ons criteriosos. Em paralelo, queremos ser uma voz construtiva no debate sobre sucessão e profissionalização de PME, através da partilha de casos práticos. O objetivo é simples: criar confiança para que mais fundadores considerem esta terceira via.

“Medimos sucesso em três dimensões. Sustentabilidade económica: negócios mais rentáveis, resilientes e com melhor conversão de caixa”.

Que impacto pretende deixar na economia e na sustentabilidade das empresas familiares?

Medimos sucesso em três dimensões. Sustentabilidade económica: negócios mais rentáveis, resilientes e com melhor conversão de caixa. Sustentabilidade social: equipas mais qualificadas, com progressão de carreira e segurança no emprego. Sustentabilidade ambiental: investimentos que reduzam consumos e desperdício e melhorem eficiência energética, sempre que a tese o justifique. A economia portuguesa e espanhola depende de PME fortes. Se ajudarmos algumas a dar o salto de profissionalização, o efeito multiplicador será significativo.

Que conselho daria a empresários familiares que ainda não têm sucessor?

Comece já, mesmo que não tenha pressa para sair. Mapeie processos críticos, documente relações com clientes e fornecedores, identifique líderes intermédios e defina um calendário realista. Peça uma avaliação independente para perceber onde a empresa cria valor e onde perde eficiência. E avalie todas as opções, incluindo a terceira via: vender a quem quer liderar e continuar a construir sobre o que já está bem. Se conhece um caso com este perfil, estou muito interessado numa conversa reservada e sem compromisso.

Respostas rápidas:
Maior risco
: Ter deixado uma carreira estável para me lançar num projeto incerto – por isso mesmo lhe dei o nome “Audaz”.
Maior erro: Não ter começado a ler de forma obsessiva (ainda) mais cedo. As lições próprias chamam-se experiência; as lições dos outros são ensinamentos.
Maior lição: “Se queres ir rápido, vai sozinho; se queres ir longe, vai acompanhado” – um provérbio africano que se tornou regra de vida.
Maior conquista: Ter criado – e mantido – uma família coesa, com valores e propósito. A família é a base estruturante da sociedade.

Comentários

Artigos Relacionados