Opinião

O cenário Calígula

João César das Neves, economista e professor catedrático

Será possível o aparecimento de um novo Calígula? Uma publicação dedicada à liderança é o lugar adequado para experiências e especulações instrutivas, como construir o cenário de, no atual mundo democrático, dinâmico e interconectado, surgir um líder narcisista, ignorante e irresponsável com poder global.

Sempre tivemos tiranos, como Nero ou Putin, ou devastadores como Hitler ou Maduro, mas é concebível hoje a aparição, muito mais rara, de um delirante leviano como Calígula no trono de uma superpotência? Considerar a eventualidade pode ser esclarecedor.

A primeira questão é a probabilidade da hipótese. Numa democracia moderna, a funcionar, como verificar-se a subida ao poder de tal personagem, pedante e caprichosa? Isso só seria plausível se o país sofresse uma profunda doença social, com grave clivagem cultural e extremo desprestígio dos responsáveis e instituições. Assim, como na Roma Imperial, um Calígula é antes mais sintoma de decadência civilizacional. Por muito estrago que depois gere, ele resulta sempre de algo terrível.

Que tipo de consequências são previsíveis? Não são. Pode ter um período inicial de alguma calma benévola, como o original Gaius Caesar, mas depois vem a loucura. Um líder narcisista não tem programa, ideologia ou lealdades. Ele pretende, acima de tudo, centrar em si permanentemente a atenção geral. Isso exige um fluxo contínuo de dislates, infâmias e absurdos, satisfazendo a sua avidez de holofotes, mas também ofuscando problemas, exigências, adversários, na ânsia de ocupar todo o espaço. Para o normal desenrolar de uma sociedade e economia, o resultado é um borbulhar de emoções, destruindo a legalidade, o progresso, a paz.

Poderá tal liderança ser eficaz? O efeito dominante é incerteza, veneno dos negócios e adubo da especulação. É normal que múltiplos interesses tentem capturar o petulante. Mais, como a generalidade das pessoas não é egocêntrica, é comum interpretar de forma racional os comportamentos do chefe: dizem-no conservador, inovador, genial, incompreendido. Até é possível que alguns, por lisonja e adulação, consigam aproveitar-se momentaneamente da governação para uma agenda particular. Mas esses lampejos são fugazes. Calígula tem um único mestre, o capricho. O seu objetivo é apenas manifestar a sua supina magnificência, a qual ficaria sempre manchada respeitando uma convenção. O seu mandato terá de ser uma ímpar “era de ouro”, incompreensível para os demais, ultrapassando interesses, partidos e objetivos.

O quarto elemento desta experiência é a certeza que os estragos serão muitos, grandes e difíceis de reparar. Num mundo rico e poderoso como o nosso, mas rasgado por tantos desencontros e conflitos, um Calígula poderia ser demolidor. Líder inconsciente com poder global, num tempo integrado e articulado, gerará consequências em todo o planeta e, naturalmente, os alheios serão quem mais se queixa. Mas a verdadeira ruína é local. Serão parceiros, ministros, funcionários, empresas e cidadãos do seu país quem mais perderá com o consulado desvairado. Quanto mais próximo, pior: Calígula foi assassinado pela própria Guarda Pretoriana. Aliás, os adversários, por muito perseguidos que sejam, costumam ganhar mais que os aliados, precisamente pela distância e contraste com a loucura. A maior vítima será a prosperidade e influência da própria superpotência.

Por outro lado, é importante não exagerar as consequências. Uma sociedade, e ainda mais o mundo, são grandes demais para serem realmente afetados de forma duradoura por um único líder. O maníaco acha-se sempre mais poderoso do que é, os seus inimigos vão sempre pintá-lo como horrendo, mas a realidade tem muito mais poder que a política.

Como acaba um reinado assim? As possibilidades são múltiplas; a mais razoável é que acabe cedo e mal, como o Calígula original. Também é provável que lhe suceda um período de estabilidade e abundância. Um excêntrico tem tendência a funcionar como vacina. Ele até pode gerar a catarse que cura a doença originária.

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João César das Neves

João César das Neves

Licenciado e doutorado em Economia, João César das Neves é professor catedrático e presidente do Conselho Científico da Católica Lisbon School of Business & Economics, instituição onde, ao longo dos anos, já desempenhou vários cargos de gestão académica. Também possuiu um mestrado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e um mestrado em Investigação Operacional e Engenharia de Sistemas pelo Instituto Superior Técnico. Ao longo do seu percurso profissional também esteve ligado à atividade política. Em 1990 foi assessor do... Ler Mais..

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