Opinião

O bom samaritano e o dilema ético do K2

Carlos Rocha, economista e gestor

A parábola do bom samaritano descrita na bíblia visa ensinar sobre o amor ao próximo, principalmente, quando se trata de quem precisa.

Na passagem, Jesus conta a história de um homem que foi vítima de assalto e deixado para morrer na berma do caminho, mas passando dois homens, separadamente, nenhum deles o socorreu. Foi um terceiro viajante, um samaritano, que era considerado um inimigo dos judeus, que acabou por socorrer o homem assaltado. O samaritano continuou a sua viagem e, no regresso, pagou as despesas do tratamento do homem assaltado.

Quem, pelo menos, nas entrevistas de emprego ou nos exames de faculdade não se deparou com perguntas que envolvem a moral e a ética, nomeadamente ter que escolher quem salvar ou deixar morrer, nomeadamente o dilema do trem que é uma experiência sobre ética, idealizado por Philippa Foot em 1967?

Na vida real e nas organizações também isso acontece. No passado mês de julho, na montanha K2 no Nepal ocorreu algo que chocou o mundo. Segundo as informações do Insider, o K2 é apelidado de “Montanha Selvagem” devido à dificuldade acrescida na sua subida até ao topo em comparação com a montanha mais alta do mundo, o Everest. Para termos noção, o Everest tem uma taxa de mortalidade de 3% para alpinistas, enquanto o K2 chegou a ter uma taxa de mortalidade de 25%.

O que chocou o mundo foram as imagens de montanhistas passando “ao lado” de um carregador paquistanês de 27 anos enquanto ele estava morrendo no caminho, vítima de um acidente. Um carregador é a pessoa que transporta os equipamentos para a equipa de reparação das cordas que guiam os montanhistas e leva os utensílios dos montanhistas. Geralmente, são pessoas muito pobres, vulneráveis financeiramente, com famílias para cuidar e que procuram esta atividade como forma de obterem rendimentos. Num acidente a 27 mil pés de altitude, ficou de cabeça para baixo, acabando por não resistir. Dezenas de montanhistas passaram pelo carregador sem o socorrer devidamente, enquanto ele morria.

Dilema ético; sucesso pessoal ou possibilidade de ser heroína

Uma alpinista norueguesa foi a má desta péssima fita. Ela estava obstinada a quebrar o recorde mundial por se tornar uma das pessoas mais rápidas a chegar ao cume de todas as 14 montanhas de 8.000 metros do mundo. E ela foi acusada de ser uma das pessoas que passou por cima do carregador. Os montanhistas estariam dispostos a ajudar um ser humano em perigo, mas só depois de conseguirem o seu sucesso ou troféu pessoal. Fizeram ao contrário do bom samaritano.

Não é raro nas organizações encontrar este tipo de comportamento, principalmente em ambientes altamente competitivos, sem uma cultura de equipa. As organizações são sistemas, ou seja, as pessoas trabalham conjuntamente para a realização de um objetivo comum, e por isso as empresas gastam milhões em programas de team building. É um facto que a pandemia e o trabalhar a partir de casa fizeram estragos na cultura organizacional, pelo que é preciso resgatar determinados valores da cultura organizacional.

Para isso é preciso conhecer o propósito da organização: atingir os objetivos melhorando a sociedade e beneficiando todos os stakeholders. O propósito não surge do vácuo, ele precisa de ser cultivado pela liderança evitando a bordagem “nós versus eles”.

Por exemplo, a empresa Nortel, uma das maiores cotadas da Bolsa de Toronto, faliu em 2009 e quando o caso foi estudado, descobriram que, previamente, tinham destruído uma cultura colaborativa e de confiança. A cultura do poder esmagou o propósito organizacional. O escritor Dan Pontefract inclui a ética como elemento do propósito organizacional.

Como líder, deve sempre avaliar a cultura de valores da sua organização, não o que está escrito nos manuais da organização, mas sim o que é vivido no dia a dia.

Nem sempre a posição mais alta de liderança é a mais difícil

Segundo o treinador de escalada Alan Arnette há um ditado popular que afirma: “se você quer se gabar, você escala o Everest. Se você quer respeito, você escala o K2”. Quando falamos em liderança, também nem sempre uma posição mais alta é mais difícil de se atingir ou de se manter. Efetivamente, há posições de liderança nas organizações que exigem respeito e são como os escaladores do K2. As condições atmosféricas para escalar o K2 são diferentes do Everest. Em qualquer dos casos é preciso ética.

Se é líder, crie um propósito claro para a sua equipa ou organização e comunique-o de forma eficaz e, sobretudo, seja um modelo: lidere pelo exemplo e demonstre as qualidades que você espera dos seus colaboradores.

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Carlos Rocha

Carlos Rocha

Carlos Rocha é economista e atualmente é vogal do Conselho de Finanças Públicas de Cabo Verde e ex-presidente do Fundo de Garantia de Depósitos de Cabo Verde. Foi administrador do Banco de Cabo Verde, onde desempenhou anteriormente diversos cargos de liderança. Entre outras funções, foi administrador executivo da CI - Agência de Promoção de Investimento. Doutorado em Economia Monetária e Estabilização macroeconómica e política monetária em Cabo Verde, pelo Instituto Superior de Economia e Gestão – Lisboa, é mestre em... Ler Mais..

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