Opinião
O amor em modo digital: “vocálica, proxémica e oculésica”*
Desde os “idos” de 1980, época em que os robôs começaram a ser introduzidos nas grandes empresas industriais para realizarem tarefas “únicas e pesadas, como soldagem, pintura a spray ou montagem”, os progressos da robótica e da Inteligência Artificial têm vindo a registar um tal desenvolvimento e aceleração que as preocupações se centram hoje cada vez mais nos seus impactos na natureza do trabalho.
Designadamente do que diz respeito ao tipo e extensão das atividades humanas que poderão vir a ser progressivamente substituídas por máquinas cada vez mais sofisticadas e “inteligentes”. A grande, e compreensível, apreensão que esta questão suscita, tem vindo, no entanto, a ser, digamos, aliviada, pela ideia de que uma possível “grande expropriação” do trabalho humano pelas máquinas estará sempre confrontada com uma difícil, e alegadamente, insuperável limitação: a de que, como assinalou Rosalind Picard, “enquanto os sistemas e as máquinas não puderem lidar com emoções, é pouco provável que se envolvam em atividades e em tarefas ao nível dos seres humanos inteligentes”.
Desenganem-se, no entanto, aqueles que iludem as suas angústias com “o manto diáfano da fantasia”. Eis que se anuncia o surgimento da “computação afetiva” e, com ela, a criação de máquinas e sistemas tecnológicos “capazes de reconhecer e exprimir afeto”.
Com o alvor destes sistemas computacionais, a espécie humana pode vir a experimentar uma das maiores regressões filogenéticas da sua história, vendo uma das suas principais e mais diferenciadoras faculdades, designadamente o processamento e a autorregulação das emoções, poder ser imitado, e até suplantado, por “máquinas emocionais” que “podem reconhecer, interpretar, gerar e reagir a emoções humanas”.
Como as emoções são processos químicos e metabólicos que se traduzem em reações fisiológicas, físicas e comportamentais, os computadores poderão ser dotados de uma série de sensores programados para reconhecer automaticamente “os estados emocionais de um utilizador identificando e avaliando indicadores fisiológicos e mudanças nos seres humanos”, podendo, por essa via, estabelecer tipos de interação entre máquinas e mesmo entre pessoas e máquinas que podem de facto assemelhar-se a relacionamentos emocionais autênticos entre seres humanos.
Neste sentido, é de facto possível ver “robôs antropomórficos” praticarem a empatia através de “sensores giroscópicos” que medem os movimentos do corpo e estabelecerem sincronizações apoiadas em ferramentas de subespecialidades técnicas como a “vocálica” (técnica de análise de voz) e a “oculésica”, que estuda os movimentos dos olhos.
Por este andar, qualquer dia, quem sabe, podemos até vir a ter robôs de géneros indiferenciados, como manda a moral da época, a gerar relacionamentos emocionais de tipo “romântico”, baseados em “químicas algorítmicas”, inaugurando uma nova e promissora era de felicidade baseada no “amor em modo digital”.
Tentemos imaginar, usando de alguma liberdade literária, um cenário possível de um “robótico romance” entre duas máquinas antropomórficas que interagem entre si através de uma combinação complexa de redes de sensores.
Uma delas, que pode assumir o papel de ele, ela ou “isso”, deteta, na outra, pela “oculésica” um discreto movimento ocular oblíquo descendente, codificado como “interesse casto” e aciona, pela “vocálica”, o tom de voz programado para a função “sedução”. Os sensores da outra máquina captam por sua vez indicadores na morfologia do seu exoesqueleto codificados como “intumescências de humores” a indicar disponibilidade e acionam os elétrodos de condutância de pele, numa réplica mecânica de “frisson” erótico humano, analisado por “elétrodos que detetam mudanças indicativas na transpiração (…), na frequência respiratória (…) e na atividade elétrica cerebral.” Ambos, seguindo uma rigorosa sequência algorítmica, vão-se movimentando mecanicamente numa coreografia proxémica em frenética progressão alegórica até ao climax final.
Muito embora um cenário deste tipo, aqui desenhado intencionalmente em tons de um irrealismo absurdo, e altamente improvável, possa estar muito longe daquilo que é a nossa atual noção do real, o que é facto é que os espantosos progressos da investigação em robótica e IA nos vêm surpreendendo com horizontes cada vez mais disruptivos.
Apesar de tudo, é importante salientar, como nota final, e em defesa da maior “humanidade do humano”, que esses eventuais tipos de interações de “natureza emocional” aqui hipoteticamente sugeridos, se vierem realmente a acontecer, obedecerão sempre e exclusivamente a regras e combinações algorítmicas puramente técnicas, faltando-lhes a centelha de alma e o sortilégio de mistério que convertem as genuínas emoções humanas em verdadeiros passaportes para o sublime.
*Nota do autor: Este texto foi composto a partir de sugestões e citações extraídas do livro “O Futuro das Profissões”, de Richard e Daniel Suskind, Editora Gradiva.