Opinião

Não há milagres económicos grátis

João César das Neves, economista e professor catedrático

Ultimamente surgiu na nossa discussão económica uma palavra inusitada: “milagre”. O Prémio Nobel Paul Krugman, velho amigo de Portugal, disse na entrevista ao Jornal de Negócios de 21 de novembro que a nossa economia é “uma espécie de milagre”.

Dois dias depois, no debate do Orçamento, a ministra Ana Catarina Mendes, citou Passos Coelho a 1 de março de 2016 que afirmava: “Para poder cumprir as metas ou há milagres ou há consequências”, concluindo que o tal milagre aconteceu e deu muito trabalho aos executivos socialistas.

Esta conversa é politicamente perigosa pois, em reação, toda a gente lista os enormes problemas, em particular na pobreza, que destroem o prodígio. Mas, para lá de debates partidários e aproveitamentos jornalísticos, a questão relevante é saber se há algum elemento maravilhoso na nossa prestação económica.

De facto, existe algo que quem siga a nossa realidade tem de considerar fantástico: dois excedentes orçamentais em 2019 e 2023. Uma honra que ninguém pode tirar ao Governo socialista é ter conciliado, pela primeira vez na história nacional, democracia com equilíbrio orçamental. Nos mais de 200 anos de experiências de liberdade nunca foi possível ter por cá as contas públicas positivas. Nem no liberalismo de oitocentos, nem na Primeira República, nem desde o 25 de Abril os nossos governos livres atingiram a solidez financeira. Debaixo de ditadura ‒ de João Franco, Salazar, FMI ou troika ‒ conseguia-se, mas logo que voltava a autonomia, de esquerda ou de direita, regressava o maior ou menor descalabro fiscal.

A lógica que gerou os seculares défices crónicos sempre foi evidente e férrea: para manter as boas graças dos eleitores, os governos livres tinham de gastar mais do que podiam, o que repetidamente conjurava o fantasma do endividamento. Num povo viciado em subsídios e apoios, só os ditadores conseguiam força para impor a detestada parcimónia.

Foi neste elemento central da nossa vida política que António Costa atingiu o prestígio lapidar. Em 2019, não pela primeira vez em democracia, como tantos insistem, mas pela primeira vez desde 1914, existiu excedente orçamental sem ditadura. É verdade que a pandemia estragou tudo, mas o feito tem repetição prevista para este ano e orçamentada para 2024. Vivemos assim algo inimaginável em dois séculos: governos de Esquerda, em parte até apoiados pela extrema-Esquerda, que, com vista à prioridade absoluta das “contas certas”, aplicam a mais rigorosa austeridade.

É neste ponto que o sucesso começa a soar a choco, pois “austeridade” continua a ser palavra maldita na retórica governamental. O equilíbrio, que a humanidade só conseguiu com severidade, foi aqui atingido alegadamente sem cortes. Aliás, sem sequer reduzir nenhuma das benesses que o Estado garante derramar sobre a sociedade; precisamente aquelas benesses que, ao longo de 200 anos, colocaram em apuros financeiros sucessivos governos escolhidos por sufrágio. Ou seja, a atitude de fundo não mudou. Como se conseguiu então o sucesso?

A resposta oficial está nos dotes milagrosos dos ministros, comparados a magos das finanças ou ases de futebol. Mas em questões aritméticas não há lugar para magias ou virtuosismos. Aí, mais do que nunca, estão ausentes os almoços grátis. Se não se fizeram reformas estruturais nem se abandonaram as esmagadoras responsabilidades públicas em múltiplos setores, algum outro meio teve de ser usado.

Felizmente, na democracia moderna, não é possível escamotear a realidade financeira, pelo que a verdade é pública e notória. A tal magia e virtuosismo deveram-se a um enorme aumento de impostos, em cima do “enorme aumento de impostos” da troika em 2012, acompanhado de grandes cortes nas despesas de investimento e funcionamento dos serviços. Para dar plausibilidade à negação da austeridade subiam-se salários e pensões e havia sempre algumas descidas pontuais de tributações, enquanto se subiam os outros impostos, aumentando a carga fiscal.

A conclusão desta estratégia, consistentemente seguida desde 2015, não é difícil de constatar. Portugal tem sucessivos excedentes e descidas da dívida, um êxito que é inegável e precioso, embora a dívida continue gigantesca. Mas, como dizia Passos Coelho em 2016, houve consequências. Crescimento medíocre da economia e problemas crescentes no funcionamento dos serviços públicos. A Saúde, Educação, Justiça e tantas repartições gritam for falta de meios, enquanto as empresas gemem debaixo da carga fiscal desmesurada. Pode dizer-se que o Estado português não fez dieta; vestiu uma cinta.

Este é o principal problema do tal milagre: o país sofre muito com a austeridade. Mas há ainda outro efeito: a situação financeira não é sustentável. Mais cedo ou mais tarde, o desequilíbrio irá regressar. Prova disso: o Orçamento para 2024, que sofreu o recorde de mais de 1900 propostas de alteração, teve 122 do próprio partido de Governo; aquele partido que, na apresentação a 10 de outubro, o tinha considerado uma maravilha. Com eleições à vista, adeus, excedente!

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João César das Neves

João César das Neves

Licenciado e doutorado em Economia, João César das Neves é professor catedrático e presidente do Conselho Científico da Católica Lisbon School of Business & Economics, instituição onde, ao longo dos anos, já desempenhou vários cargos de gestão académica. Também possuiu um mestrado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e um mestrado em Investigação Operacional e Engenharia de Sistemas pelo Instituto Superior Técnico. Ao longo do seu percurso profissional também esteve ligado à atividade política. Em 1990 foi assessor do... Ler Mais..

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