Entrevista/ “Não contrato grandes profissionais, contrato grandes pessoas”

É chef e proprietário de restaurantes como o Kampo e Ákua, no Funchal. No início deste ano adquiriu uma das mais icónicas fábricas madeirenses, a Chábom, que produz os típicos bolos de mel, broas e rebuçados há mais de quatro décadas. Ao Link to Leaders, Júlio Pereira fala sobre a paixão pela cozinha e sobre a sua veia de investidor e empreendedor.
Nasceu em 1978, na Carvoeira, pequena aldeia do litoral oeste de Portugal, entre a Serra de Sintra, as ondas da Ericeira e o histórico convento de Mafra. Foi nos talhos do pai, nas hortas do avô e na cozinha da mãe que Júlio Pereira se apaixonou pela gastronomia. Em 1993, integrou a Escola de Hotelaria do Estoril e de jaleca na mão passou por vários destinos internacionais: em Torino trabalhou no Hotel Principe di Piemonte, em Barcelona com o chef Sergi Arola no Arola, em Angola participou na abertura do primeiro hotel de cinco estrelas do país e em São Tomé e Príncipe no hotel Bombom Resort.
Em 2013, com o nascimento da sua filha Maria, trocou o continente pela Madeira. Em dezembro de 2018, no coração da cidade do Funchal, nasce o Kampo by chef Júlio Pereira, onde Júlio Pereira trabalha a carne e os produtos do campo, que o acompanharam desde os tempos de infância. O conceito rapidamente conquistou o palato dos madeirenses e dos turistas que visitam a ilha e, em julho de 2019, na mesma rua do Kampo, nasceu o seu segundo projeto de restauração, o Ákua by chef Júlio Pereira, que celebra os sabores do mar e da sua infância na Ericeira.
Em janeiro deste ano, estreou-se fora da hotelaria e comprou uma pequena instituição madeirense, a Fábrica Chábom, que lhe permite juntar aos seus vários projetos a produção de bolos de mel, broas e rebuçados artesanais.
Quem é o chef Júlio Pereira?
Nascido e criado até aos seus 16 anos na Carvoeira, aldeia agrícola em zona piscatória, filho de talhantes e criadores de gado. Hoje aos 45 anos um sonhador, muito exigente consigo e com os que o rodeiam. Empresário em várias áreas do ramo alimentar, investidor no ramo da construção civil, e pai da Maria de 10 anos.
“Era um jovem trabalhador que sabia desmanchar uma vaca com 13 anos, uma criança simpática com sonhos de querer ser mais que talhante ou um agricultor que eram os exemplos que tinha por perto”.
Como surgiu a sua paixão pela cozinha?
Não foi uma escolha planeada, surgiu como alternativa à linha de ensino convencional nos anos 90. Era um aluno mediano, mas já com muita experiência de vida. Era um jovem trabalhador que sabia desmanchar uma vaca com 13 anos, uma criança simpática com sonhos de querer ser mais que talhante ou um agricultor que eram os exemplos que tinha por perto. Esses foram os motes para sair da aldeia com 16 anos e não voltar mais, pelo que a cozinha, na altura, surgiu como veículo para começar a explorar e “comer o mundo”.
Como chegou ao Funchal?
Em 2013, momento em que nasceu a Maria, percebi que tinha chegado o momento de aplicar tudo o que aprendi até então e iniciar um novo – e o principal – projeto da minha vida até então, que era ser pai da Maria. Voltar à Madeira era voltar ao paraíso, e estar na a região perfeita para iniciar e desenvolver esta nova etapa. Os restaurantes chegaram após 5 anos na Madeira, onde até então tinha optado pela segurança e conforto de trabalhar em hotéis.
Como consegue gerir dois restaurantes, o Kampo e Ákua, com propostas e posicionamentos distintos? Qual o segredo?
O segredo é rodear-me de pessoas competentes, em quem confio, e que tenham a mesma visão de estar no mundo, sendo que um dos principais pilares da empresa é o “Estar bem consigo mesmo”. Para mim, é muito importante a ambição, tanto a nível profissional como pessoal, sendo que juntas tornam as pessoas comprometidas com a empresa e com os seus projetos de vida. Os restaurantes não são do chef Júlio, são de uma equipa de 56 ‘visionários’ e empreendedores que tem uma visão de um futuro em crescimento. Não contrato grandes profissionais, contrato grandes pessoas.
O chefe não se fica só pela cozinha. Em que é que consiste a iniciativa “12 chefs 12 meses”?
Todos os dias eu aprendo com os outros, estou sempre em aprendizagem contínua com tudo e com todos. Este projeto é, para mim, um culminar da partilha e da amizade, a honra de receber em nossa casa pessoas que sabem mais do que nós, e que têm o mesmo gosto e paixão pela partilha e pela amizade, e pela área.
“A sociedade inverteu a pirâmide laboral de uma forma muito rápida, e com essa viragem o compromisso das pessoas para com as empresas e com os seus princípios foram alterados”.
Quais têm sido os maiores desafios que tem encontrado na área da restauração?
O compromisso. A sociedade inverteu a pirâmide laboral de uma forma muito rápida, e com essa viragem o compromisso das pessoas para com as empresas e com os seus princípios foram alterados. As pessoas não querem caminhar para alcançar um determinado objetivo, preferem chegar ao seu objetivo rapidamente, independentemente da maneira como chegam lá e enquanto saltam etapas, ou muitas das vezes estão perdidas na procura desse objetivo. As pessoas têm tanto o direito como o dever de procurar o melhor para a sua vida, mas as empresas e as instituições do estado não estão a conseguir acompanhar esta mudança de paradigma. A carga fiscal tira-nos competitividade salarial comparando com outros países, o que nos debilita seriamente para o nosso futuro enquanto empresários, e como país.
No início deste ano comprou uma das mais icónicas fábricas madeirenses, a Chábom. O que o levou a investir neste projeto?
Quero diversificar as minhas áreas de investimento, como dizem as boas práticas de gestão, em área que dinamizem e valorizem a Madeira e o que temos de melhor. A Chábom é um projeto com 40 anos de sucesso que estava a precisar de uma nova fase, de uma nova visão. Creio que esta empresa é um espelho de muitas outras que nasceram de pequenos sonhos de família, sendo que hoje em dia muitos dos filhos destas famílias não querem dar continuidade a estes negócios, tal como eu que não quis dar seguimento aos talhos do meu pai. São ícones do nosso país, cultura e tradições, e se puder contribuir para a preservação de alguns, fico muito feliz.
Faz parte dos seus planos exportar broas e bolo de mel?
Sim, a Chábom já o faz para os EUA, África do Sul, e Canadá, mas queremos mais e melhor. Queremos valorizar a Marca “Madeira”, a Marca Portugal e a Marca Chábom, a par do Mel-de-cana da Madeira, um produto singular no mundo pela forma única como o fazemos, com técnicas e tradições com séculos de existência, e também pela forma especial como o utilizamos na gastronomia regional. É um longo caminho que eu quero fazer.
Que outros planos tem para a fábrica?
Localmente, queremos trazer singularidade com edições limitadas de bolos de Mel-de-cana, receitas essas de famílias centenárias da Madeira. Vamos também desenvolver a nossa área de chocolates e fazê-los chegar a casa de todos os portugueses, não só aqui no arquipélago como no continente. Temos pensado e planeado um grande crescimento a nível da presença nas grandes superfícies nacionais, tal como já acontece aqui na Madeira.
Como se conjuga a função de chefe com a de investidor/empreendedor?
Com muita regra e planeamento, e com uma equipa incrível de mulheres ao meu redor. Nas posições de chefia só tenho mulheres, calhou mas ainda bem. A Liliana como Chef executiva dos restaurantes, a Catarina como diretora de operações dos restaurantes e construção/desenvolvimento, e a Isabela como diretora de operações da Chábom.
“Gostaria muito de investir mais neste tipo de negócios como a Chábom. Negócios com história, cheios de vida, de e para as pessoas”.
Em que outros projetos gostaria de investir?
Gostaria muito de investir mais neste tipo de negócios como a Chábom. Negócios com história, cheios de vida, de e para as pessoas.
Vais continuar a investir ou a criar projetos gastronómicos na Madeira?
Por agora não planeio investir em mais restaurantes; pelo menos, enquanto andarmos com esta enorme dificuldade em conseguir pessoas dedicadas e apaixonadas pela áreas, que queiram estabelecer um vinculo de compromisso duradouro.
Projetos para o futuro?
2023 vai manter-se assim, temos muitos desafios pela frente, e queremos fazer as coisas bem e de forma estável. Comecei como empresário há 4 anos e temos crescido muito depressa, pelo que preciso que este ano seja de consolidação e solidificação dos projetos existentes.
Respostas rápidas:
O maior risco: O meu otimismo: sou muito positivo e tem-me proporcionado boas lições. Cresço sempre com isso.
O maior erro: Nunca vejo as coisas assim, não tenho um “erro maior”. Errar faz parte do meu crescimento, não se cresce sem erro.
A maior lição: A minha infância de comerciante, talhante e agricultor.
A maior conquista: A Maria, a minha filha, que é a minha razão e o meu legado.