Opinião

Mais licenciaturas, menos rendas.

Ricardo Monteiro, comentador de política internacional e economia

Vivemos numa era em que a promessa de mobilidade social está em declínio. A ideia de que o esforço individual pode suplantar a origem socioeconómica tornou-se, na prática, cada vez mais ilusória.

A desigualdade extrema nas sociedades atuais, refletida nos coeficientes de Gini, confirma que a condição de nascença é hoje um dos mais determinantes fatores de destino. Ao mesmo tempo, a classe média — tradicional amortecedor social — está a ser comprimida entre a precariedade e o poder crescente dos muito ricos e super-ricos.

Nos Estados Unidos, o país do “American Dream”, o coeficiente de Gini ronda os 0,44, um dos mais altos entre os países desenvolvidos, e a mobilidade social é baixa: apenas 7,5% dos nascidos nos 20% mais pobres conseguem alcançar os 20% mais ricos. Tudo contrário à ideia fundadora do país, uma república democrática em que todos teriam oportunidade de suplantar as barreiras de classe da velha Europa aristocrática. O Gini relativo à riqueza líquida é impressionantemente alto, ultrapassa os 0.85 significando uma concentração elevadíssima da riqueza em poucas mãos (um Gini 0 representa igualdade perfeita, 1 significa desigualdade total em que apenas um indivíduo detém toda a riqueza e/ou rendimento).

Em Portugal, o Gini situa-se nos 0,33 para o rendimento e 0.70 para a riqueza líquida. Nos países nórdicos, embora o Gini esteja abaixo de 0,28 para o rendimento disponível, as diferenças no acesso à habitação e à acumulação de capital começam a crescer de forma preocupante. Segundo a Nordregio terá havido um aumento de 300% no preço da habitação na Suécia sendo que a inflação acumulada foi de apenas 70% nessas 3 décadas. Na Dinamarca, embora o coeficiente Gini seja de apenas 0.28 para o rendimento, esse coeficiente é de 0.83 para a riqueza líquida disponível. Nesse indicador é um dos países mais desiguais da OCDE quase ao nível dos EUA. Ou seja, no nosso país os rendimentos são mais desiguais mas a riqueza está menos concentrada que na Dinamarca ou nos EUA.

A desigualdade deve-se pois a esta crescente concentração de riqueza, geralmente hereditária, e ao aumento desproporcional dos chamados “bens de capital”, uma casa ou dinheiro para investir num negócio, por exemplo. Segundo o relatório de 2024 do Credit Suisse, 1% da população mundial detém mais de 45% da riqueza global. Nos EUA, esse valor ultrapassa os 50%. O crescimento do capital — via rendimentos financeiros, imóveis e heranças — ultrapassou largamente o crescimento dos salários. Entre 1980 e 2020, a fatia do rendimento nacional dos 10% mais ricos nos EUA passou de 34% para mais de 48%, enquanto a dos 50% mais pobres caiu de 20% para menos de 13%. No total dos países da OCDE, desde os anos 80 até hoje, o rendimento do trabalho (salários) em percentagem do PIB terá caído cerca de 10 pontos percentuais em benefício dos rendimentos de capital.

O trabalho não é mais um fator de ascensão social e, inversamente, possuir capital assegura o crescente enriquecimento de quem o concentra.

A tributação sobre heranças, um dos mecanismos históricos de redistribuição, tem vindo a desaparecer. Nos EUA, o chamado estate tax aplica-se hoje a menos de 0,1% das heranças, graças a uma isenção que em 2025 ultrapassará os 15 milhões de dólares por pessoa. No Reino Unido, o imposto de 40% sobre heranças acima de £325.000 aplica-se a apenas 4% das mortes, e sucessivos governos têm proposto alívios adicionais. Em Portugal, o imposto de sucessão foi praticamente abolido: entre familiares diretos paga-se apenas 10 euros de imposto de selo. Este desmantelamento generalizado tem permitido que grandes fortunas passem intactas de geração em geração, cristalizando desigualdades e criando verdadeiras dinastias económicas.

Um exemplo paradigmático é o sistema britânico de leasehold, que perpetua o controlo aristocrático sobre terrenos urbanos. Mesmo imóveis comprados a “preço de mercado” continuam dependentes de contratos de longo prazo, mantendo o poder fundiário em mãos de poucas famílias nobres ou de instituições como a Coroa já que, findo o período de “lease”, a propriedade regressa ao seu proprietário original.

Thomas Piketty alerta precisamente para este efeito: sem uma tributação eficaz sobre heranças e património, a desigualdade tende a auto-replicar-se. A riqueza deixa de ser fruto de inovação ou trabalho, passando a ser herdada como privilégio. Isto esvazia a democracia de conteúdo real e mina a coesão social.

A compressão da classe média é visível: entre 1990 e 2020, os seus rendimentos cresceram apenas 0,3% ao ano na OCDE, enquanto os custos da habitação e da educação dispararam, como exemplificámos acima e sabemos ser um dos maiores problemas do nosso país. A vida digna tornou-se mais cara, e o acesso ao capital, mais exclusivo. Quando o mérito deixa de contar e o futuro parece predeterminado, instala-se a frustração e a apatia democrática. A desigualdade deixou de ser apenas uma falha económica: é, cada vez mais, uma ameaça estrutural à ideia de justiça e à própria estabilidade das sociedades ocidentais. Está na hora das sociedades entenderem que, para haver equilíbrio social e democracia política e económica, é fundamental incentivar o trabalho aliviando a carga fiscal que sobre ele incide, libertando fundos para investimentos de todo o tipo, desde a simples habitação ao incentivo ao investimento produtivo.

A redistribuição de riqueza, se acreditarmos ser necessária, terá que ser financiada através da taxação do privilégio da herança e dos ganhos de capital – ações, dividendos, rendas. Assim voltaremos a querer dar boas licenciaturas aos nossos filhos, investir na sua educação e conhecimentos, em vez de andares para alugar, ou carteiras de investimentos que lhes permitam jogar golf desde os 20 anos sem contributo algum para a sociedade.

Comentários
Ricardo Monteiro

Ricardo Monteiro

Ricardo Monteiro é ex-presidente global da Havas Worldwide e ex-chairman global da Havas Worldwide,empresa de marketing e publicidade com presença em mais de 70 países e líder em Portugal. É speaker internacional, comentador de política internacional e economia na CNN e professor convidado da Porto Business School. Foi administrador não-executivo na Sonae MC, e special advisor no jornal Público entre 2018 e 2022. Ricardo Monteiro é casado com Leonor Jesus Correia, pai de quatro filhos e cinco vezes avô. Os... Ler Mais..

Artigos Relacionados