Opinião

Lo Mundo de Papel

Tiago Rodrigues, economista e gestor

“Este texto é inspirado numa das últimas cenas da conhecida série da Netflix “La Casa de Papel”. Uma cena de ficção televisiva, mas diferente de todas as outras, com uma dimensão político-económica e com alguns pontos de contato com o perigoso contexto económico que o mundo atravessa atualmente, cujo futuro não se afigura risonho.”

Terminei recentemente de ver a – brilhante, a meu ver – série televisiva “La Casa de Papel”, estreada em 2017, de origem espanhola e disponível na plataforma Netflix.

Nas duas primeiras temporadas, um grupo organizado planeia, ao mais ínfimo pormenor, e executa um assalto à Real Casa da Moeda de Espanha, onde viriam a imprimir 900 milhões de euros e de onde a maioria do grupo conseguiria escapar com sucesso (só possível numa série de ficção, naturalmente!), tornando-se milionários, mas com um elevado preço a pagar: a saída (supostamente) definitiva e forçada do país e a perseguição policial que sabiam que os iria acompanhar para o resto das suas vidas.

Na terceira temporada, contra todas as expectativas (audiência e sucesso a quanto obrigas!), o grupo reúne-se de novo e decide voltar a Espanha para um assalto ainda mais arrojado, desta feita ao Real Banco de Espanha, onde pretendiam derreter e apropriar-se da reserva nacional de 900 toneladas de ouro, ali guardada, algo que conseguem fazer com sucesso no final da quinta e última temporada, após múltiplos eventos e peripécias, apenas possível numa série de ficção televisiva ou cinematográfica.

Uma das cenas de maior ficção de toda a série estava, contudo, reservada para o último episódio, sendo diferente de todas as outras que pudemos assistir ao longo das várias temporadas, como os mui criativos planos e ideias do “Professor” (estratega do grupo) para contornar os desafios, dificuldades e contratempos que iam surgindo.

Digo diferente, pois trata-se de uma cena de ficção com uma dimensão político-económica e com pontos de contato com a realidade atual, bem distinta do enredo televisivo.

Uma cena crucial, no último suspiro da série, que me fez pensar, por momentos, se não teria um propósito pré-determinado, como se de uma mensagem de alerta se tratasse, extravasando o entretenimento televisivo que, naturalmente, norteou a realização desta série.

Quanto à cena, na última e mais importante negociação de toda a série, entre o “Professor” e o líder da equipa de comando e negociação destacada pelo governo espanhol, o primeiro chantageou o segundo com a ameaça de destruição de todo o ouro, o que resultaria, supostamente, na incapacidade do país em financiar-se nos mercados de dívida internacionais, dada a impossibilidade de colateralização, conduzindo-o, inevitavelmente, à falência.

A ficção chegou a tal ponto que a própria União Europeia decidira alhear-se e deixar à sua sorte (bancarrota, entenda-se) um dos seus mais importantes países-membros.

Ora, esta cena é uma ficção absoluta, na medida em que o financiamento dos países ditos desenvolvidos, assim como a quantidade de moeda que os seus governos não param incessantemente de imprimir, há muito (desde 1971, nos EUA) deixaram de estar correlacionados ou colateralizados com as reservas de ouro depositadas nos seus bancos centrais.

Este não é, porém, um artigo sobre crítica televisiva, muito menos sobre teoria monetária, mas vem a propósito de algo que vem ocupando, amiúde, o meu pensamento, sobre o perigoso contexto económico que o mundo atravessa, qual quadratura do círculo, cuja resolução não consigo vislumbrar.

Um contexto em que os países ditos desenvolvidos apresentam, na sua maioria, uma dívida pública vertiginosamente crescente, em alguns casos em níveis insolventes, uma população progressivamente envelhecida e sistemas de proteção social – onde estes existem – tendencialmente insustentáveis, a que se junta, no plano macroeconómico, um tímido crescimento económico (sobre isto falarei num futuro artigo), uma forte pressão inflacionária (cujos níveis reais são superiores aos oficialmente anunciados), fruto da incessante impressão monetária, taxas de juros em patamares historicamente baixos (negativos, em alguns casos) e uma elevada carga fiscal, acima do aceitável.

Como se tudo isto não bastasse, a “cereja no topo do bolo” parece ser a anunciada disrupção financeira, por agora ainda imprevisível, mas que parece imparável, assente numa progressiva descentralização dos mercados financeiros e autonomização do sistema de transações, por via da tecnologia blockchain e de um cada vez maior e mais sofisticado número de projetos e ativos digitais (incluindo as famosas criptomoedas), cujos reais efeitos e impactos o tempo encarregar-se-á de nos demonstrar.

Não tenho uma bola de cristal, mas o futuro não se afigura risonho. Di-lo quem teima, invariavelmente, em ver o “copo meio-cheio”, mas não desta vez.

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Tiago Rodrigues

Tiago Rodrigues

Tiago Rodrigues conta com mais de quinze anos em funções de gestão e administração em empresas de energia, infraestrutura, turismo e imobiliário e oito anos como consultor, com experiência de vida, profissional e académica em Portugal, Brasil, Reino Unido e EUA. Concluiu um programa de liderança em Harvard, uma pós-graduação em finanças, uma licenciatura em economia e um bacharelato em contabilidade e administração. Foi palestrante em dezenas de eventos de negócios na Europa e em programas de universidades portuguesas. Gosta... Ler Mais..

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