Opinião

Liderança “tensa” e liderança “intensa”

Mário Ceitil, formador e professor universitário

Numa epígrafe ao Capítulo I do livro “Confiar & Inspirar” de Stephen M.R. Covey, Peter Drucker afirma que “daqui a umas centenas de anos, quando a história do nosso tempo for escrita numa perspetiva de longo prazo, é provável que o acontecimento mais importante que os historiadores vejam (…) poderá ser uma mudança sem precedentes na condição humana.

Pela primeira vez, literalmente, um número substancial e cada vez maior de pessoas tem escolha. Pela primeira vez terão de se gerir a si próprias”. (1) Apesar desta previsão ter hoje uma ampla confirmação empírica, numa paisagem social e organizacional onde os valores democráticos e as sociedades abertas se têm vindo a expandir, surgem atualmente algumas nuvens negras que prenunciam inquietantes tendências para um retorno perigoso às ideias totalitárias e às práticas autoritárias. Essas ideias e essas práticas, cujo crescimento é sem dúvida uma das principais preocupações das sociedades democráticas, defendem, entre outras, a ideia de que, se dermos “demasiada” liberdade às pessoas cairemos inevitavelmente no caos e na desordem, alegando que uma das principais características da “natureza humana” é justamente o facto de as pessoas não se conseguirem, pura e simplesmente, gerir a si próprias.

No contexto das organizações, os líderes que perfilham estas ideias assumem, por isso, práticas de liderança que, em vez de agirem no sentido de “Confiar e & Inspirar” (2) criando nos locais de trabalho e nas equipas um ambiente “intenso” (3) que desafia e estimula as pessoas a darem o seu melhor, usam um estilo de “Ordenar e Controlar” (4) , agindo como líderes “redutores (Diminishers)” (5), que, pelo contrário, “criam um ambiente tenso, dominando o espaço, criando ansiedade e julgando os outros de um modo que tem um efeito sufocante no pensamento e nos resultados das pessoas”. (6).

Embora este último estilo se revista por vezes de um aspeto “benevolente (7), que permite suavizar as manifestações mais radicais das atitudes de controlo extremo e sufocante, o que prevalece, nesses líderes, é sempre a descrença na capacidade das pessoas de se autogerirem e de se responsabilizarem pelos próprios comportamentos e opiniões, o que justifica e suporta uma outra crença, esta muito compensatória para o ego desses líderes, sobretudo dos mais narcisistas: a de que “sem mim, a vida seria um caos”.

Por isso, para muitos desses líderes o “maior desafio é conseguirem abrir mão do controlo”, (8) acreditando que o melhor remédio para alguma possível falha de controlo… é ainda mais controlo. Essa crença gera um círculo vicioso, acabando por conduzir à instalação de um clima de enorme tensão nos colaboradores e nas equipas, que sentem o seu “ar psicológico” cada vez mais reduzido, o que, como é óbvio, em vez de os estimular a darem o seu melhor, os convoca para sentimentos ou de retraimento passivo ou de protesto agressivo que, mesmo que não se manifestem de forma evidente, minam a autoestima, “secam” o potencial e corroem a performance.

No limite, e como assinala Stephen M. R. Covey, “os líderes Ordenar & Controlar podem conseguir que lhes obedeçam, mas, regra geral, pouco mais do que isso”. (9). Se o objetivo do líder for pura e simplesmente, impor a sobredeterminação da sua vontade sobre os outros, usando as prerrogativas que o seu enquadramento na organização lhe confere, então este será seguramente o estilo adequado. Mas se, pelo contrário, a estratégia de liderança tiver o seu foco no “angariar um empenho sentido que é dado de forma livre e entusiástica” (10), então o caminho terá de ser totalmente diferente, dando às pessoas maior margem de liberdade e permitindo-lhes formular escolhas pessoais de acordo com os seus valores e propósitos individuais.

E é esse justamente o cenário que está contido na inspirada visão de Peter Drucker: uma sociedade mais aberta e mais livre e organizações onde as pessoas, em vez de meros “recursos humanos”, sejam verdadeiros “parceiros” de “negócios” que, em vez de gerarem apenas benesses para algumas minorias, sejam uma autêntica e genuína expressão de propósitos integrados, onde os sucessos e os benefícios possam ser fruídos por todos e onde os projetos, mesmo os que correm mal, sejam assumidos como tendo sentido e dignidade para serem incluídos numa lógica de destinos partilhados.

As nuvens negras que pairam hoje sobre o nosso horizonte, com o ressurgimento de ideologias totalitárias e com os exemplos, a vários níveis, de líderes autoritários onde as efusões de ego transbordam os limites da decência, podem, é facto, trazer novos períodos de instabilidade e de um aparente retorno histórico a vestígios de um obscurantismo que julgávamos já definitivamente arrastado para o “caixote de lixo da História”.

Mas, no fundamental, e como o devir histórico tem sempre demonstrado, no confronto permanente entre forças contraditórias e na perpétua reconfiguração de novos realinhamentos que caracteriza o progresso, irá emergir sempre a força inquebrantável da determinação dos homens à libertação das amarras que os tolhem e que limitam a sua profunda aspiração à grandeza.

Por isso, tanto nas sociedades como nas organizações, continuaremos seguramente a assistir, e a participar, neste percurso incessante que, de modo contínuo e inexorável, nos tem historicamente levado da ausência ou limitação da possibilidade de escolha, para a multiplicidade da “escolha múltipla” e, mais recentemente, e com o suporte dos mais recentes desenvolvimentos tecnológicos, à “escolha infinita”. (11)

Nesta linha, comprovando a antevisão de Peter Drucker, e num mundo onde, apesar das forças contrárias, “nunca, como agora, se teve tal capacidade de escolher como será a nossa vida” (12), os líderes, pelo menos no contexto mais específico das organizações, irão perceber cada vez mais que o empenho não se obtém com base na obediência cega ou coagida, mas sim através das atitudes proativas e voluntárias de colaboradores que sentem que o desenvolvimento das suas organizações constitui uma parte integrante e essencial do seu próprio desenvolvimento como pessoas.

E, no final, e como a História tem vindo a demonstrar, sobretudo no chamado “mundo ocidental”, tanto nas sociedades como nas organizações a liberdade e a dignidade humanas acabarão sempre por prevalecer.

Referências
(1) COVEY, S.M. (2023). Confiar & Inspirar. Lisboa: Clube do Autor, S.A.
(2) Idem
(3) WISEMAN, l. (2017). Multipliers – How the Best Leaders Make Everyone Smarter. New York: HarperCollins Publishers.
(4) COVEY, S.M. (2023). Confiar & Inspirar. Lisboa: Clube do Autor, S.A.
(5) WISEMAN, l. (2017). Multipliers – How the Best Leaders Make Everyone Smarter. New York: HarperCollins Publishers.
(6) Idem
(7) COVEY, S.M. (2023). Confiar & Inspirar. Lisboa: Clube do Autor, S.A.
(8) Id
(9) Id
(10) Id
(11) Id
(12) Id

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Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

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