Opinião

Imaginação, Deus e a inteligência artificial

João Monsanto, CEO da LarM*

“No princípio era o verbo, o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”. Versículo 1:1 do Evangelho de João, no livro Sagrado da Bíblia. Há inúmeras versões sobre o significado deste “verbo” divino, traduzido do grego logos como a “palavra”.

A palavra nasce como o princípio, a origem do registo verbal e da comunicação. Ela permitiu, há mais de três mil anos, passar a registar os nomes, as relações, as ações, os bens, as leis, as heranças materiais e imateriais e criar testemunhos intemporais que trouxeram até aos dias de hoje os conhecimentos que temos desse tempo passado.

Profetas, filósofos, senadores e políticos, percebendo o poder da palavra, dominaram o mundo com a sua arte da eloquência, moldando os destinos da antiguidade. E qual o segredo do poder do verbo/palavra?

Sugiro uma experiência: junte um grupo de amigos e peça-lhes para fecharem os olhos para que ouçam atentamente a história que lhes vai contar. Pausadamente leia-lhes o seguinte texto:

“Um cavalo gigante e ruidoso, movimentava-se por uma estrada e aproximava-se rapidamente de um castelo grotesco e curvado na penumbra. A ponte estendia-se sobre um fosso largo e negro e o cavaleiro de cabelos louros hesitou ao aproximar-se dela.

Estava no ar um odor pesado a que a terra molhada não era alheia.

No cimo de uma torre, meia rasgada, uma bandeira hasteada auspiciava que nada de bom se encontrava dentro daquelas muralhas. Uma voz ecoou como uma ameaça:
– Quem se atreve a perturbar o repouso dos indesejados?

Terminado, faça cada uma das seguintes perguntas a pelo menos dois dos presentes:
– Na sua ideia, que tamanho tinha o cavalo? Um metro da cabeça até aos pés, dois metros, enorme até ao céu?
– Qual a sua cor?
– O castelo tinha a porta aberta ou fechada?
– Quantas torres tinha a fachada do castelo?
– E como era a voz que se ouviu? Alta, baixa, grave, aguda?

Vai poder constatar que na maioria dos casos não há duas respostas iguais. Cada um dos inquiridos responde às perguntas e retrata a cena de forma diferente de acordo com a sua personalidade, o seu histórico, a sua cultura, a sua experiência emocional e até de acordo com o estado de espírito em que se encontra naquele momento.

E não há respostas erradas. Todas estão certas.

Irá reparar que esta história deu também a todos o maior prazer, porque a integraram naturalmente. Não foi a história que lhes contou que causou este efeito, mas aquela que cada um ouviu. Os seus amigos não foram simples espetadores, foram criadores orientados pelas “palavras” que proferiu. A história foi redesenhada pelo “eu” de cada um.

Esse é o poder da palavra.

O som é tecnicamente o canal de comunicação mais quente porque, como se observou, é o que permite mais espaço para a imaginação e consequentemente o ouvinte sente-se confortavelmente e “calorosamente” envolvido. Recorde-se do efeito das histórias que os pais contam aos filhos para estes adormecerem.

A escrita segue-se nesta escala de “quente/frio”, porque a ler, não podemos fechar os olhos e elevar os sentidos como fazemos quando ouvimos algo. A leitura exige o nosso esforço e tem a interferência da luz, do papel e do tipo de letra que nele está desenhada.

Depois, se lhes disser “pensem agora no paraíso”, esse “paraíso” vai ser o “paraíso” de cada um onde se vão sentir maravilhosamente. Mas se lhes mostrar uma fotografia, por exemplo, do que acha que seria um paraíso para si, cada um vai encontrar inúmeros defeitos: “a água está verde”, “tem poucos empregados”, “prefiro o campo”….

Quanto mais mostramos, mais esfria e encurta o espaço para a imaginação.

Agora, suponhamos que todos estão numa sala de cinema a ver um filme do tipo “Os Cavaleiros da Távola Redonda”, onde a história que contou é uma das cenas. As respostas às questões visuais ou auditivas seriam todas iguais: “… três torres e a voz era bem alta e aguda!”

Ver e ouvir mais, é imaginar menos.

“Quente” e “frio” é uma atribuição técnica seletiva usada pelos planeadores de meios de comunicação para determinar os canais a usar em campanhas de publicidade conforme os objetivos de envolvência pretendidos.

Percebemos assim que os mais modernos simuladores de Realidade Virtual onde se estão a desenvolver os Metaversos, para além de nos colocarem num mundo 3D como o nosso, alguns já incluem tato e olfato e são por isso, nesta perspetiva, gelados.

Podemos então perguntar “Porque é que o homem procura cada vez mais usar a sua imaginação e os seus recursos para construir formas de pôr o próprio homem a imaginar cada vez menos? Imaginar menos não pode matar o livre pensamento?”.

Diz a Bíblia que Deus é Onisciência, porque tem conhecimento completo de tudo, Onipotência porque tem poder ilimitado e Onipresença porque está presente em todos os lugares e ao mesmo tempo.

A Inteligência Artificial também. Se não já, dentro em breve. Só estará em causa a Onipotência, o poder total, pelo menos no mundo real. Saber tudo e chegar a todo o lado já é uma inevitabilidade (o ChatGPT e os novos AI Chat’s que estão a ser lançados são bons exemplos para os mais céticos).

Mas no Metaverso não terá a Inteligência Artificial o papel de Deus na sua plenitude? Um Deus com que todos falam e que homogeneíza todas as respostas em padrões uniformes?

No princípio era o verbo e por isso Deus tinha milhões de formas diferentes, uma no imaginário de cada pessoa.

Hoje, “Oh, meu Deus…” caminha para dar lugar a um “Oh, Deus, diz-me…”.

Fala-se nesta caminhada que estão a nascer e vão proliferar novas religiões baseadas em Deuses artificiais discutindo-se, uma vez mais, a origem do universo e fazendo sempre lembrar o famoso filme “2001 Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke.

Assim, juntando tudo no caldeirão chamado vida, como se irá misturar a referida desimaginação do homem com o domínio do artificial? Um caldo de confortável apatia ou uma efervescente poção de dinâmica humanista positiva onde “o verbo é sempre Deus”?

Na senda do desenvolvimento, as Tecnologias Imersivas não são boas nem são más, são como um copo meio cheio ou meio vazio, dependendo de quem acredita que o que está a acontecer é positivo e faz um esforço para evoluir e aproveitar esta demanda para o bem comum ou aquele que por medo, desconhecimento, distanciação, ou mera arrogância, se coloca numa posição negacionista. Esta última atitude rapidamente transformará homens em “meta-excluídos”, perdidos no mundo geracional, tal como aconteceu com os “infoexcluídos” que proliferaram com a introdução da informática e da internet no nosso quotidiano no final dos anos noventa do século passado.

É fascinante imaginar quais serão os seus valores e como lidará o homem do futuro num universo comunicacionalmente gelado e tecnologicamente dominado!

*LarM-Realities Creators

 

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