Opinião
Humanos e Máquinas: a Interdependência que Nos (Des)liga

Vivemos tempos paradoxais. O tempo em que tudo está “ligado” — mas nem sempre estamos ligados uns aos outros.
O digital trouxe-nos avanços inegáveis: aproxima pessoas, acelera processos, dá-nos acesso imediato à informação e, mais recentemente, permite-nos interagir com inteligências artificiais que aprendem connosco. Mas há um paradoxo silencioso: quanto mais dependemos da tecnologia, mais nos afastamos do contacto humano genuíno.
Um exemplo simples (e recorrente) a que todos já assistimos: o almoço com a família ou amigos. A mesa está posta, a comida cheira bem, mas reina o silêncio. Não há conversa, troca de ideias, nem discussões sobre futebol ou política. Em vez disso, cada um está no seu ecrã.
São as mesmas personagens que, noutro espaço temporal, estão a ouvir podcasts — longas conversas entre desconhecidos. Pessoas que não conhecemos a falar sobre temas que nem sempre nos tocam. Chegámos a um novo voyeurismo social: escutamos os outros enquanto ignoramos os nossos.
Este fenómeno estende-se a quase todos os contextos do nosso quotidiano. Nos transportes públicos, nos cafés, nos encontros românticos… Estamos juntos, mas não estamos presentes. Comunicamos com emojis, reagimos com “likes” e partilhamos “stories”, mas esquecemo-nos de olhar nos olhos, de escutar com atenção, de simplesmente… estar.
E há outros exemplos, igualmente caricatos. Amizades mantidas por mensagens automáticas (“Desculpa, estou ocupado, falamos depois”), e relações iniciadas (e por vezes terminadas) com a ajuda de IA — que já escreve elogios, sugestões de encontro e até pedidos de desculpa com uma precisão quase desconcertante.
Estamos a ficar bons em comunicar com algoritmos, mas menos treinados em lidar com silêncios reais, com emoções humanas e com as falhas normais das interações. Perdemos a paciência para conversas longas, mas ouvimos cinco episódios consecutivos de um podcast.
Trocamos risos genuínos por reações pré-programadas. E, convenhamos, uma gargalhada nunca deveria vir com delay.
Mais recentemente, a inteligência artificial entrou nesta equação. Agora, há IA que escreve por nós — mensagens de amor, discursos motivacionais, e-mails de desculpas. Está tudo otimizado. Tudo certo. Mas será… humano?
Será que nos estamos a tornar em mestres da eficiência emocional, mas a perder a prática da vulnerabilidade real? Aquela que vem com silêncios desconfortáveis, com risos inesperados, com a lágrima que aparece sem aviso.
A interdependência com o digital é irreversível. A IA já não é apenas uma ferramenta; é um interlocutor, um curador, um filtro da realidade. Mas não tem cheiro, nem calor, nem lágrimas.
Podemos inverter esta tendência? Talvez não no sentido de regressar ao passado, mas de a reequilibrar. Precisamos de reumanizar o digital. De reaprender a brincar, a conversar com hesitações, a corar ou a escutar com empatia. Precisamos de reaprender a comover-nos. Chorar de emoção com a presença do outro, e não com o final de uma série.
O digital pode ser a ponte, mas não pode ser o fim. A IA pode sugerir, mas não pode sentir.
Talvez o futuro não nos peça que escolhamos entre o humano e o digital, mas que recordemos o que é, afinal, ser humano.