Opinião
Homo Digitalus: o pós-Homo Sapiens Sapien

Desde os primórdios da humanidade, a evolução do ser humano tem sido marcada pela adaptação às suas condições e pela inovação. Do Australopiteco, que caminhava sobre duas pernas há cerca de quatro milhões de anos, ao Homo Sapiens, que desenvolveu a linguagem e a capacidade de raciocínio complexo, cada passo na escala evolutiva trouxe transformações significativas.
Hoje, entramos numa nova fase: o Homo Digitalus, onde a integração entre o humano e a tecnologia está a reformular o que significa Ser Humano.
A evolução tecnológica, acelerada e ao mesmo tempo subtil, está a criar esta nova forma de ser humano. O Homo Digitalus convive de forma natural com a inteligência artificial (IA), muitas vezes sem se aperceber de como esta molda decisões, interações e rotinas. Plataformas como o GPT-4 O3 da OpenAI ultrapassam os limites da inteligência humana em testes como o ARC-AGI-1 Public, provando que já não estamos apenas a acompanhar o progresso; estamos a delegar a inteligência, a criação e até a decisão às máquinas.
Um marco histórico que exemplifica esta evolução ocorreu em 1997 (menos de 30 anos), quando o computador Deep Blue, da IBM, derrotou o campeão mundial de xadrez Garry Kasparov numa série de jogos memoráveis. Esta competição simbolizou o caminho que se avizinhava: o da capacidade das máquinas ultrapassar os limites humanos em áreas consideradas intelectualmente desafiadoras.
Mas não é apenas no mundo digital onde esta evolução se faz sentir. Robots físicos, que outrora estavam confinados a fábricas e indústrias, estão a ganhar espaço nas nossas casas, ajudando nas tarefas do dia a dia e tornando-se companheiros invisíveis. Os aspiradores robotizados (os famosos Roomba e não só), as assistentes virtuais em dispositivos inteligentes (a “minha” Alexa) e até mesmo os sistemas de entrega por drones (em testes) são exemplos concretos dessa transição. Esta integração não é abrupta, e por isso é subtil, suave, mas profunda, redefinindo relações e perceções sobre o que significa Ser Humano.
A próxima fronteira para o Homo Digitalus vai além da interação com dispositivos externos. A biotecnologia está a abrir caminho para a integração direta entre o corpo humano e a tecnologia. Implantes que aumentam as capacidades sensoriais, interfaces cérebro-máquina que permitem controlar dispositivos com o pensamento (vejam-se os resultados públicos indicados pela Neuralink) e avanços na medicina regenerativa estão a transformar o Homo Sapiens em algo novo. A distinção entre humano e máquina torna-se cada vez mais difusa, e o próprio corpo começará a incorporar equipamentos biotecnológicos como extensões naturais.
Quando olhamos para os próximos 30 anos, é impossível não refletir sobre o que nos aguarda. Em menos de três décadas, passámos de uma vitória histórica de uma máquina sobre um humano para um futuro onde a integração homem-máquina é quase indistinguível. A próxima geração, os chamados Gen Z e Alpha, cresce num mundo onde conceitos como “1.000 contos” são incompreensíveis (aconteceu-me numa apresentação de um trabalho de grupo de uma licenciatura) e onde a memória histórica é substituída por conteúdos efémeros do TikTok.
Para além da superficialidade de conteúdos, esta geração enfrenta desafios relacionados com a dependência digital. Estudos apontam que o tempo de atenção está a diminuir, enquanto a capacidade de reflexão crítica e a curiosidade intelectual são progressivamente substituídas por respostas instantâneas geradas por algoritmos. O Homo Digitalus está a emergir como um ser que consome informação, mas raramente a questiona, criando uma tensão entre avanço tecnológico e regressão cognitiva.
Adicionalmente, as ondas tecnológicas em curso, como a computação quântica, a biotecnologia e a fusão nuclear, prometem mudar radicalmente os paradigmas atuais. A integração entre IA e biologia, por exemplo, está a abrir caminho para novas fronteiras na saúde, na longevidade e até mesmo na definição do que é vida. Contudo, há riscos significativos associados: a desigualdade no acesso a estas tecnologias pode ampliar o fosso entre países e indivíduos, criando uma nova “elite digital”.
O desafio que enfrentamos não é apenas tecnológico, mas também humano. Como podemos garantir que estas ondas de inovação não nos afogam? Como podemos educar as novas gerações para equilibrar a dependência tecnológica com a capacidade de pensar criticamente, de preservar a história e de criar um futuro consciente? O Homo Digitalus está aqui, mas o que será do Homo Sapiens se não aprender a navegar esta nova realidade? A extinção?
Em última análise, a construção do futuro dependerá de algo além do simples progresso técnico: exigirá um compromisso com valores humanos universais, uma reflexão coletiva sobre os limites do progresso e uma responsabilidade partilhada para que o Homo Digitalus não perca a sua humanidade essencial.