Opinião
Gente que sobrevive
Existe uma realidade social e profissional lá fora, nem sempre visível ou percetível, mas que importa ver e conhecer, para que possa ser compreendida e valorizada e, porque não, progressivamente mudada. Porque toda a gente tem o direito de viver, não apenas de sobreviver.
Um destes dias, ao início da noite, quando saía do escritório, no centro de Lisboa, cruzei-me na rua com dois homens sem-abrigo, ainda jovens, na casa dos 30 anos, que preparavam as suas trouxas para mais uma noite ao relento, na galeria exterior de um prédio, a escassos metros de uma movimentada avenida da capital.
No momento em que passava por eles, um deles olhou-me e de forma educada e com um tom cordial afirmou “Senhor, peço desculpa por estar aqui a dormir”, num daqueles momentos que nos deixam “desarmados”, não apenas por se tratar de dois jovens (não que este fenómeno seja menos chocante noutras faixas etárias), mas também pela inesperada forma e conteúdo da sua abordagem. “Não tem nada que pedir desculpa, era o que mais faltava”, retorqui-lhe eu, prosseguindo o meu caminho.
Um momento que me deixou pensativo e me trouxe à memória um filme marcante e que aprecio particularmente, “Em busca da felicidade”, que relata a história, verídica, do cidadão norte-americano Chris Gardner, durante um período difícil da sua vida, em que (sobre)viveu num contexto de grande sacrifício pessoal, na companhia do seu filho de dois anos, enquanto desesperava por um emprego que lhe permitisse ter uma vida condigna.
O aspeto mais marcante deste filme é, a meu ver, a coragem e a inesgotável determinação com que Chris, brilhantemente representado por Will Smith, enfrenta e ultrapassa os obstáculos que, de uma forma avassaladora, se vão atravessando no seu caminho, sem, todavia, perder a sua confiança e autoestima.
Recuando alguns anos, quando ainda vivia em São Paulo, no Brasil, fiz uma pausa profissional de três meses, período durante o qual tive a rara oportunidade e privilégio de poder dedicar todo o meu tempo a mim e à minha família.
Nunca desde o início da minha carreira, há mais de duas décadas, tinha experienciado tão prolongada pausa e sem um vínculo de trabalho, o que a tornou verdadeiramente diferenciada, dada a total ausência de obrigações ou compromissos de natureza profissional.
Durante este período procurei fazer algumas coisas que me havia desabituado, entre as quais deslocar-me pela cidade em transportes públicos ou, simplesmente, caminhar pelas ruas, sem a correria habitual, como se o tempo fosse ilimitado.
Há largos anos que não utilizava transportes públicos (exceto em viagens de turismo) e nunca o havia feito em São Paulo.
Nos trajetos que fiz, principalmente de comboio (trem no Brasil), pude testemunhar a azáfama diária de muita gente, nas suas longas e cansativas deslocações para o trabalho.
Vi jovens mães com bebés ao seu colo, prostradas de sono e cansaço, dormitando até chegarem ao seu destino, e escutei relatos de pessoas que madrugavam e enfrentavam várias horas nas suas deslocações diárias, a troco de salários quiçá insuficientes para terem uma vida condigna.
Nas minhas caminhadas pelas ruas de São Paulo, parava invariavelmente para tomar café numa das improvisadas bancas de rua (onde as pessoas, horas depois de saírem de casa, param para tomar um café e comer uma fatia de bolo, antes de entrarem ao serviço) e ali ficava a observar as pessoas que iam passando, tentando interpretar as suas expressões.
Pessoas com um semblante resignado, com expressões de tristeza, porque não de angústia, face, digo eu, à dureza das suas vidas, em que cada dia mais parece uma prova de sobrevivência.
Mais recentemente, fiz algumas obras de remodelação em casa. Durante semanas pude testemunhar a dureza da vida de quem faz disso o seu trabalho. Gente com os corpos castigados pelo frio, pelo calor, pelos pesos que carregam, pelas quedas e mazelas que invariavelmente acabam por sofrer.
Estes diferentes episódios, que aqui partilho, foram como que um choque de realidade para mim, vendo as dificuldades e sacrifícios que tanta gente enfrenta no seu dia a dia.
Gente que trabalha, muitas vezes arduamente, mas cujo rendimento não lhes é suficiente para ter uma vida condigna.
Gente que parece não ter outra alternativa a trabalhar em atividades, seguramente importantes e necessárias, mas que deixarão marcas físicas nos seus corpos.
Gente que quer e precisa de trabalhar, mas que não encontra espaço para o fazer, com as marcas que isso poderá deixar nas suas mentes.
Ou, pior ainda, gente cujas necessidades são ainda mais básicas, de natureza fisiológica, como as dos dois jovens do início deste texto, como as de ter o que comer ou onde dormir.
Existe uma realidade social e profissional lá fora, nem sempre visível ou percetível, mas que importa ver e conhecer, para que possa ser compreendida e valorizada e, porque não, progressivamente mudada.
Porque toda a gente tem o direito de viver, não apenas de sobreviver.